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A elite e as massas

Um desporto que se apresente como democracia participativa, ou como cultura de solidariedade, acontecerá, um dia, com um neo-socialismo, onde de facto seja verdade uma democracia participativa e não a estatolatria que nos submerge, ao serviço do grande capital.

Sou do tempo em que se pensava que as elites do espectáculo desportivo nasciam das grandes massas de praticantes. Não havia por aí entendido, nestas coisas do desporto, que não sustentasse que os nossos maus resultados, internacionalmente falando, não decorresse do reduzido número de praticantes, designadamente nos escalões etários mais jovens. Hoje, sabe-se que o desporto na escola, ou o lazer desportivo, não são o fundamento primeiro do desporto de alta competição. Aquele há-de encontrar-se na escolha cuidada de super-dotados e até na necessidade social de um certo nacionalismo e de uma certa comunhão com o sagrado. O capitalismo neoliberal que nos comanda já criou um cemitério para o sagrado e começou a enterrar a teoria, já que proclama, com arrogância, o ?fim da história?. Convenhamos que também a União Soviética, onde se verificou a estatização e não a socialização dos meios de produção ? a União Soviética fez o mesmo. E também nela o pretenso comunismo tentou sepultar a história e a teoria.
Em Portugal, com a Revolução dos Cravos, pensou-se que ?a história caminha para o socialismo? e continuava-se o pensamento dominante, mormente na segunda metade do século XX: são as revoluções que transformam a história; estas deverão realizar-se por via insurreccional e não por via institucional; a luta anti-imperialista conduz inevitavelmente ao socialismo. Assim pensavam também os ?barbudos? que invadiram Havana, comandados por Fidel Castro, e que influenciaram mais a América Latina do que o marxismo-leninismo influenciou a Europa. Enfim, quer o regime soviético, quer o regime capitalista têm-se distinguido pelo ?pensamento único?, que leva à morte da inovação teórica e prática. No entanto, para os homens de boa vontade, com o desaparecimento do ?socialismo científico?, uma luta se impõe ? a luta contra a sociedade de mercado, onde tudo tem preço, onde tudo se vende e se compra; a luta por uma nova hegemonia mundial, mais ética do que económica.
Ora, o desporto de alta competição é um dos aspectos da estratégia imperial do neoliberalismo. Também, nele, é evidente uma ideologia e um modelo de sociedade. A propósito, poderíamos escutar o sociólogo brasileiro, Emir Sader, no seu livro A vingança da História (Boitempo Editorial, São Paulo, 2003, p. 57): ?A exportação desse modelo de sociedade encontrou, no mais poderoso aparelho de propaganda jamais existente na História (a combinação entre meios de comunicação e indústria do divertimento) o instrumento da sua universalização. Eles compõem um impressionante aparato económico, informativo e de divertimento, que chega a quase o mundo inteiro, generalizando estilos musicais, cinematográficos, de moda, informativos, próximo de uma formidável homogeneização que acompanha e dá alma à globalização neoliberal. Os critérios de verdade, beleza, morais, gerados por esses mecanismos, se estendem como nunca no Ocidente. McDonald?s, Hollyood, jeans, Coca-Cola, CNN, Microsoft são símbolos da ?universalidade? do american way of life e do seu sucesso mundial. As teses de Francis Fukuyama sobre o fim da história correspondem à ideia política de que a história teria chegado a seu horizonte último ? a democracia liberal e a economia capitalista de mercado. Seguiriam ocorrendo acontecimentos, porém nenhum superando esse marco histórico, seu patamar final?. O desporto de alta competição também integra o ?aparelho de propaganda? da sociedade de mercado que tem nos Estados Unidos o seu modelo. Trata-se, portanto de um desporto de elites, dominado pelo mercado e pela publicidade, onde o desporto escolar e o lazer desportivo pouco mais representam do que pobres aleijões, mascarados de factores higiénicos e educativos. Só há desporto de massas, na sociedade de mercado, se dele resultar alienação e lucro. Aliás, o mesmo poderíamos dizer do desporto de alta competição, citando o caso dos clubes de futebol, com excepção dos ?três grandes? e do Braga, do Marítimo e do Nacional, estes três últimos por razões de afirmação regional.
A crise do desporto escolar e do lazer desportivo é do mesmo teor da crise que atravessam as regalias sociais dos trabalhadores. Chegámos ao apogeu do capitalismo e, perante o espanto de muita gente, verifica-se uma desprotecção crescente dos mais necessitados, o predomínio do niilismo e da ganância e a ostentação de uma vida luxuosa e viciosa. Que o mesmo é dizer: o desporto continuará um factor de pura alienação, de que os governantes falam, por mero populismo ou por exigências da conjuntura. Um desporto que se apresente como democracia participativa, ou como cultura de solidariedade, acontecerá, um dia, com um neo-socialismo, onde de facto seja verdade uma democracia participativa e não a estatolatria que nos submerge, ao serviço do grande capital. Que é hoje o desporto? É, acima do mais, um espectáculo de alienação popular, publicitado, durante 24 horas, por todos os meios da Comunicação Social. Visando a saúde e a educação, ou até as necessidades básicas de movimento?
Na sociedade de mercado, não se reproduzem os valores da vida, mas a reprodução do capital. O desporto, com todas as suas imensas virtualidades éticas e políticas, pode ser um factor de cultura comunitária, de democracia radical e global. Pode... mas ainda não é! Para que o seja, é preciso que o mundo associativo se afaste do capitalismo existente e faça de cada praticante desportivo um sujeito participante da gestão da sociedade. A maior das falácias que muitos políticos arrogantemente apregoam é a de que se torna impraticável transformar, ou erradicar, este capitalismo que nos consome. Através do desporto, poderemos caminhar para um mundo novo. Através do desporto, é possível renascer a esperança!


  
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Edição:

N.º 152
Ano 15, Janeiro 2006

Autoria:

Manuel Sérgio
Universidade Técnica de Lisboa
Manuel Sérgio
Universidade Técnica de Lisboa

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