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Woyzeck na primeira pessoa

O João Rita, de todos os meus companheiros desta aventura da vida e dos jornais o que sempre se mostrou mais atento às minhas fragilidades, desafia-me a evocar a experiência da interpretação, nos idos de 1972, no Teatro dos Estudantes da Universidade de Coimbra, do personagem Woyzeck na peça homónima inacabada de George Buchner e na encenação de Julio Castronuovo.
Há 33 anos, aos 18, começava a ter medo de ser incapaz de combater o próprio medo, num despertar de Primavera timidamente político que cinco linhas de glória, a cores, oferecidas pela jornalista Maria Antónia Palla no então Século Ilustrado, eram ainda insuficientes para dar o necessário salto no escuro.
No papel de "Woyzeck", na encenação de Castronuovo para o TEUC, viajei  de Coimbra (Teatro Avenida e  Teatro de Gil Vicente) a Aveiro (Teatro Aveirense) e, mais tarde,  a Ponta Delgada  (Teatro Micaelense), à Ribeira Grande (Teatro Ribeiragrandense), a Angra  do Heroísmo (Teatro Angrense), à Horta (Teatro Faialense) e a Évora (Teatro Garcia de Resende)., a encerrar um Festival de Teatro da Sociedade Operária Joaquim António de Aguiar.
Em Angra do Heroísmo, no velho Teatro Angrense, oito anos antes do terramoto de 1 de Janeiro de 1980, ainda menino e moço, apesar de metido na pele de um ?Woyzeck? que me perturbava, testemunhei, sem a identificar como tal, uma cena de violência doméstica interpretada por um casal de uma ?Revista em Férias? com que o TEUC se cruzara na Ilha Terceira.
Mal eu sabia, então, que aquele homem que beijava e esbofeteava, alternadamente, uma corista do Parque Meyer que ousara qualquer coisa de supostamente indigno era a reincarnação do Woyzeck, em versão portuguesa, sem encenações nem jogos de luzes? Desde esse longínquo Verão de 1972 sonho escrever um romance, passado nas ilhas, que começa com a descrição dessa cena.
Cinco anos mais tarde começava a abandonar o Direito pelo Jornalismo, a trocar a ?mise en scene? pela ?mise en page? e a justificar, em rodapé, aquela nota que invariavelmente diz ?em francês, no original?. Trinta e três anos mais tarde, numa inesperada e agradabilíssima tertúlia do Hotel Mercure, na Praça da Batalha, no Porto, reencontro os caminhos do Teatro Nacional de São João e o Woyzeck, agora numa encenação de Nuno Cardoso.
Esta memória de 33 anos de idade foi evocada num almoço para jornalistas realizado no Hotel Mercure Batalha Porto, paredes meias com o Teatro Nacional de São João (TNSJ), na apresentação do remodelado Hotel da Batalha, agora do grupo Accor Hotels, unidade "geminada" com o próprio Teatro Nacional, na linha dos hotéis do grupo que sempre elegem um tema que os projecta.
João Miguel Araújo, director delegado da Mercure Portugal, o anfitrião desta recepção aos jornalistas, quando soube que eu tinha representado o papel de "Woyzeck" em 1972, disponibilizou um convite para a estreia desta nova encenação, assumindo o encontro como um pretexto para outros textos e como um hábito que, a consolidar-se, como já desafiou, fará a diferença do hotel que dirige.
Onde vamos já, meu caro João Rita, nesta evocação do ?Woyzeck?? Recordo-me, irreverente e tímido, de olhos postos no chão do Teatro de Bolso do TEUC (onde estava pichado na parede a frase ?avalia-se um Homem pela Natureza dos factos que o aborrecem?) a responder, sem a olhar, às perguntas de Maria Antónia Palla.
Ainda há dias, a arrumar a secretária no ?Jornal de Notícias?, nesta hora de saída e de fim de ciclo, saltou-me o recorte do Século Ilustrado onde me vejo fotografado, ao lado, entre outros,  da Guidinha, hoje uma ilustre médica em S. João de Loure e na Tocha, ou do António Nóvoa, nome de referência das Ciências da Educação..
Sabe-se lá, menina Joana, minha querida e jovem companheira desta aventura dos jornais e das tertúlias do Mercure da Batalha, o que uma secretária de um velho jornalista pode revelar na hora de fazer uma barrela de Páscoa e de mudar de vida: um homem não escreve, escreve-se. E a menina, já descobriu porque me chamam de Roldeck?
Já não tenho os medos de 1972 (tenho outros) e a minha timidez passou a ser teimosa e atrevida.


  
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Edição:

N.º 144
Ano 14, Abril 2005

Autoria:

Júlio Roldão
Jornalista do Jornal de Notícias
Júlio Roldão
Jornalista do Jornal de Notícias

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