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PESSOA: Serviço de utilidade pública ?

....retirado da minha memória e do meu diário de trabalho de campo...

Dois conceitos contraditórios. Aparentemente dialécticos. E, no entanto, com uma lógica de continuidade devido à contradição. Desde a mais tenra infância, fomos ensinados que os seres humanos foram criados para se amarem, se cuidarem, se acompanharem e ouvir as suas histórias. Acarinharem, se houver tristeza; rir com eles, se houver alegria. Os santos padroeiros destes textos, que os leitores podem encontrar no arquivo deste jornal, falam de empatia: simpática e antipática. Não apenas A. Smith em 1756, ou Sigmund Freud em 1885, 1905, 1917, ou Melanie Klein, Alice Miller, ou o mais recente, Boris Cyrulnik, esse novo Wilfred Bion, que define esse conceito de resiliência ou ?essa inaudita capacidade de construção humana...?. Ideia antiga ao ser denominada de Associativismo Cultural por Ferdinand Tönnies em 1887, ou de Solidariedade Mecânica pelo seu discípulo Émile Durkheim em 1893, e, finalmente de Reciprocidade pelo discípulo do discípulo de Tönnies, Marcel Mauss, em 1922-23. Ateus, santos padroeiros a pregar a homilia do amor entre os seres humanos e a sua interacção, do cuidado entre gerações, de visita ao doente, de ouvir com atenção e organizar o tempo para estar perto do outro de quem afirmamos gostar. Sem rispidez, sem más palavras, sem conversas de corredor, sem nos queixarmos ao outro sobre um parceiro que parece perseguir-nos. Essa cultural psicopatia portuguesa ou paranóia social, como é denominada por nós. Especialmente ao fazer queixinhas daqueles de quem esperamos um sorriso, um telefonema, uma visita inesperada, um presente, um abraço e um beijo. Tudo o que os nossos adultos nos ensinaram em crianças e que o 25 de Abril de Portugal desenvolveu ainda mais: igualdade bavessiana ou plebeus do mundo uni-vos, como Gracchus Babeuf escrevia em 1785 ? ideia genial nunca cumprida, escrita em tudo o que se denomina manifesto, levando Gracchus à guilhotina pelo seu amigo e camarada Robespierre. Tal como é criticada a liberdade dos movimentos ideológicos que hoje em dia, acontecem. Raiva pela mudança de partido de fundadores, o jantar amigável de dois antigos rivais que concorreram, com palavras duras, para um mesmo cargo, a Presidência do nosso país. Psicopatia social que acaba exactamente onde começa a Conveniência social de desfazer coligações vencedoras, porém mortas pela sua falta de eficácia no gerir do povo e dos seus bens.
Desta forma a pessoa torna-se um serviço de utilidade pública. O mesmo é dizer que a relação dura o tempo necessário para obter um grau, um favor, um lugar de trabalho. Uma mão sedutora a acariciar a nossa. Uma gratuidade para começar uma relação hierárquica que nos ensine ideias novas para serem expandidas em nosso favor pessoal. Com especial estratégia que finge inteligência, bem como a metáfora de amar aos outros como a nós mesmos. Ditado popular sacralizado em texto. Instituição social, por ter a capacidade que me falta para subir um degrau na árvore da vida e morar no Éden protegido pelo benfeitor. Emotividade ou sentimento que acaba quando se obtêm o lugar desejado. Obtendo-se assim a tão almejada posição de mais valia social. Agenda que orienta o crescimento em experiências convenientes, ligações sociais úteis, amizades bem posicionadas para meio minuto. Confiança nesse desconhecido que nos convêm e parece estar bem posicionado na via de interacção, com lucro social. Até que um dia acordamos porque se torna evidente, na corrida da vida, que a obra feita pela pessoa procurada, era apenas um armário de enganos inconveniente para a nossa auto estima.
Auto estima que abandona com facilidade os mais velhos, os incapacitados, os doentes, todos eles sem poder social, aí onde se quer brilhar e ser contemplado, especialmente pela instituição de serviço público que estimula esse tipo de comportamento.
Sou cuidado, passeado, amado, enquanto for capaz de ser utilizado nessa corrida da vida, que implica ganhar ao outro, ou, talvez, sugar-lhe importâncias convenientes às nossas habilitações, quer do seu saber, da sua paciência ou da sua capacidade de exprimir uma orientação. Cresço e ganho, quem me ensinou, envelhece e perde. No interessa porque eu digo que o amo. Que o amor seja tomar conta, acompanhar, estar com? Para quê? Não é já adulto, logo deve saber fazer? E se por acaso acompanho essa pessoa, onde ficam o meu tempo e os meus lucros sociais? Antigamente, entre nós, tudo era partilhado. Hoje, deve-se fugir para ganhar: não venham retirar de mim....
O ser humano não é pessoa, é uma instituição de utilidade social, amada enquanto for útil ao que a sociedade exige. A Catequese esqueceu-se de ensinar esta ideia!


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 144
Ano 14, Abril 2005

Autoria:

Raúl Iturra
Instituto Superior das Ciências do Trabalho e da Empresa, Lisboa
Ana Paula Vieira da Silva

Raúl Iturra
Instituto Superior das Ciências do Trabalho e da Empresa, Lisboa
Ana Paula Vieira da Silva

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