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É preciso iniciar uma reconfiguração tranquila da educação nacional

Na entrevista iniciada na página onze, o nosso colaborador Angel Santos Guerra faz uma referência ao leito de Procusto. Ele informa os que não sabem, que Procusto decidiu fazer uma cama de ferro com as medidas e demais características que julgou mais adequadas aos viajantes fatigados que lhe passavam à porta. Depois de construir a cama, passou a convidar os viajantes para que descansassem e dormissem nela. Para que tudo corresse de forma perfeita e normal, ele ajustava os viajantes à cama. Cortava os maiores que ela e esticava os que eram menores. Santos Guerra conclui que a escola que temos é um leito de Procusto. Ela quer que todos os alunos, pese a sua diversidade, se ajustem e obedeçam aos seus pré-requisitos e desfigura os que não correspondem. O nosso Procusto fez uma cama idealizando um menino ou menina, de dotes médios e da classe média burguesa e conservadora do século passado e são esses os padrões que ainda balizam o nosso processo educativo.

Esforcei-me em textos anteriores por afirmar a necessidade de tornar a escola mais flexível, mais diversa, mais respeitadora das necessidades e dos interesses dos que a procuram. É evidente que menos rigidez nada tem a ver com mais fraca, menos rigorosa, menos competente ou mais facilitadora. Pelo contrário, exigente para todos significa responder, em cada momento, às necessidades de cada um.
Sou contra os currículos alternativos que reforçam um sistema onde há uma escola para os «prometedores» e outras para os «coitadinhos». É provável que o insucesso de muitos alunos, resulte do facto de a escola lhes oferecer a cama única e lhes cortar o corpo e a alma à maneira de Procusto.
Também não estou de acordo que a escola, no secundário, para ser diferenciadora, tenha de estabelecer barreiras entre o ensino geral e o ensino tecnológico ou profissional. Este modelo baseia-se na ideia de que há um ensino mais exigente ? o geral ? e outro menos exigente ? o profissional. Todos os cursos do secundário deviam ser um composto equilibrado de disciplinas teóricas, teórico-práticas, tecnológicas e profissionais.
Sou defensor de que se permita, primeiro às crianças, depois aos adolescentes e mais tarde aos jovens e adultos que aprendam partindo do que são e de acordo com as suas aspirações e necessidades. Não esqueço que cada um, num percurso de sucesso, vai alterando a sua circunstância e as suas necessidades. Quando a pessoa muda diz-se que aprendeu.
A necessidade de por termo ao currículo único no ensino básico é um imperativo ainda maior hoje do que já o era no passado. A igualdade de oportunidades não se cumpre por todos aprenderem a mesma coisa e com o mesmo grau de intensidade. A igualdade cumpre-se quando cada um recebe o direito de fazer um percurso de sucesso que responda às suas necessidades e desejos em cada momento. A igualdade não se perde quando um adolescente decide aprender chinês com sucesso, em vez de continuar a ser mal sucedido na aprendizagem do inglês. Se um aluno decidir aprender música, com sucesso, mostrando prazer e talento, em vez de matemática, virá daí algum mal ao aluno e ao mundo? Talvez ganhemos um músico, respeitador da matemática, em vez de somarmos mais um falhado do sistema.
O currículo único e as disciplinas imprescindíveis são uma das causas do insucesso, fracasso e abandono escolares. Empurra escandalosamente para fora da escola milhares de alunos, sobretudo os oriundos das classes populares. Provoca taxas alarmantes de retenção. Permite que a maioria dos alunos recebam um certificado do ensino básico sem nunca terem aprendido nada de três, quatro e mesmo cinco disciplinas do tal currículo «obrigatório». Porque não os deixam aprender com sucesso, outras coisas, em vez de os obrigar a carregar a cruz do insucesso?
Na reportagem inserida nas páginas 24 e 25 voltamos a dar notícia da integração, no nosso sistema de ensino, dos alunos filhos de imigrantes. É um grupo de alunos que irá crescer no futuro visto que a tendência é para aumentar o número de imigrantes no país. É mais uma nova situação a exigir maior flexibilidade ao sistema educativo nacional e também uma gritante chamada de atenção para a necessidade de dar autonomia profissional aos professores. Os professores sabem o que fazer, mas estão proibidos de fazer o que sabem que deve ser feito. E tudo se esgota no fazer que fazem.
Aos alunos que não dominam a língua portuguesa, o sistema limita-se a reconhecer-lhes o nível de habilitações adquiridas nos países de origem e a conceder-lhes a matricula em função de tal reconhecimento. Sem o domínio da língua portuguesa eles estão quase condenados ao insucesso. Os que escapam devem-no às acções «transgressoras» de alguns docentes. É preciso proporcionar a estes alunos a aprendizagem do uso competente da língua portuguesa escrita e falada. Essa é uma condição para que possam estudar utilizando a língua portuguesa. A escola deve oferecer-lhes um ano de estudo intensivo da língua portuguesa e, nalguns casos, pequenas adaptações do que estudaram anteriormente ao que se propõem estudar cá.
Na base desta rigidez curricular, está a ideia errada de que todos partem das mesmas condições e que todos têm a oportunidade de chegar ao mesmo ponto se seguirem pelo mesmo caminho. Os alunos estrangeiros exemplificam bem este engano. Eles não são diminuídos nem física, nem mental, nem socialmente. Possuem conhecimentos escolares, sociais e culturais, normalmente bastante elevados. Não dominam a língua portuguesa ainda que dominem outra ou outras. Estão num ponto de partida que não é nem inferior, nem superior, mas diferente e têm a sua cultura. Exigem uma resposta adequada, mas o sistema em que estamos empurra-os ? de acordo com a normalidade do diagnóstico e das receitas nacionais ? para o grupo dos burros, dos tolos, dos coitadinhos condenados aos cursos oficialmente destinados em Portugal aos incapazes, isto é, os cursos profissionais.
Tenho a impressão que o nosso sistema de ensino, em vez de se libertar, tem vindo a petrificar-se cada vez mais. Está cada vez mais rígido, mais regulamentado, mais hierarquizado, mais confuso, palavroso, com mais gente a mandar e a não fazer nada a não ser aumentar os problemas dos que têm de trabalhar. Precisa de rejuvenescer, simplificar, de se repensar e de se reconfigurar de forma firme e tranquila.
Porque em Maio se cumpre Abril esperamos deixar em Maio algumas questões que ajudem ao debate e ao processo de reconfiguração do nosso sistema nacional de ensino.


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 144
Ano 14, Abril 2005

Autoria:

José Paulo Serralheiro
Professor e Jornalista. Director do Jornal a Página da Educação.
José Paulo Serralheiro
Professor e Jornalista. Director do Jornal a Página da Educação.

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