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"Salus populi suprema lex est"

Seja a salvação do povo a lei suprema

«O país perdeu a inteligência e a consciência moral. Os costumes estão dissolvidos, as consciências em debandada, os carácteres corrompidos. A prática da vida tem por única direcção a conveniência. Não há princípio que não seja desmentido. Não há instituição que não seja escarnecida. Ninguém se respeita. Não há nenhuma solidariedade entre os cidadãos. Ninguém crê na honestidade dos homens públicos. Alguns agiotas felizes exploram. A classe média abate-se progressivamente na imbecilidade e na inércia. O povo está na miséria. Os serviços públicos são abandonados a uma rotina dormente. O desprezo pelas ideias aumenta em cada dia. Vivemos todos ao acaso. Perfeita, absoluta indiferença de cima a baixo! Toda a vida espiritual, intelectual, parada. O tédio invadiu todas as almas. A mocidade arrasta-se envelhecida das mesas das secretarias para as mesas dos cafés. A ruína económica cresce, cresce, cresce. As falências sucedem-se. O pequeno comércio definha. A indústria enfraquece. A sorte dos operários é lamentável. O salário diminui. A renda também diminui. O Estado é considerado na sua acção fiscal como um ladrão e tratado como um inimigo. Neste salve-se quem puder a burguesia? explora. A ignorância pesa sobre o povo como uma fatalidade. A intriga política alastra-se. O país vive numa sonolência enfastiada.»

O leitor que leu a abertura poderá pensar que estamos a citar um texto dos nossos dias. Mas o que acaba de ler é a transcrição do início do primeiro livro das Farpas, escrito por Eça de Queiroz e Ramalho Ortigão e dado a público no dia 17 de Junho de 1871. Portugal mudou muito?
É verdade que alguns aspectos da história se repetem. O que é natural dadas as inúmeras heranças e permanências que atravessam a história dos povos. Mas como escreveu Marx, a história repete-se primeiro como tragédia e logo a seguir como farsa.
A tragédia e a farsa são dois géneros teatrais distintos que, na sua diversidade, transformam a dialéctica da história num processo original e, ao mesmo tempo, repetitivo. Os últimos dois anos e meio da nossa vida política estão aí para mostrar como os impasses nos podem deixar a balançar entre estes dois géneros. Ora nos damos conta da tragédia nacional, ora da farsa que a alimenta dizendo querer resolvê-la. E ficamos paralisados perante este espectáculo. Urge então mudar de guião e de artistas e de perceber a quem serve esta aparente paralisação da sociedade.
Não nos iludamos. A história não pára e as lógicas de dominação capitalista mantêm-se em desenvolvimento. Não é verdade que em dois anos e meio de aparente impasse o povo empobreceu? Os trabalhadores perderam direitos? Os pobres estão mais pobres? Os ricos mais ricos? A saúde mais distante? Os velhos mais pobres? A escola pública mais frágil, mais débil, mais elitista, mais segregacionista? Tudo isso faz parte da tragédia bem alimentada pela farsa. A «incompetência» da direita serve o poder hegemónico.
Nos últimos trinta anos, três grandes acontecimentos criaram condições para romper com o passado profundo do nosso país: o 25 de Abril, o fim do Império Colonial ? e as nossas dependências dele ? e a nossa adesão à União Europeia. Tivéssemos sabido romper, e não apenas transferir, as nossas históricas dependências e insuficiências e hoje seríamos uma sociedade diferente.
Mas continuamos assombrados pelo que fomos no passado. Primeiro dependentes da Índia. Depois do Brasil. Mais tarde da África e agora da União Europeia. Incapazes de encontrar cá dentro, em nós e por nós mesmos, a força da nossa regeneração. Em vez do confronto com a nossa realidade, com a luz, preferimos o palavreado, a cópia do estrangeiro, o lusco-fusco e algum fogo de artifício nacional para animar o ambiente.
Nós portugueses, sempre que tropeçámos na democracia, o que historicamente tem sido raro, logo nos apressámos a ver o melhor modo de a subverter. Seja no governo do Estado, seja nas instituições ou nas relações pessoais e grupais. E tudo indica que precisamos de democracia. Uma democracia que nos dê o direito ? e a obrigação ? de participarmos colectivamente na superação das velhas heranças e na construção da nova sociedade portuguesa.
A situação que temos não é boa para o povo, mas é boa para classe dominante, ainda que ela diga que não. Mas ela alimenta-se há séculos deste estado de coisas. Ponha alguém em causa o essencial da situação e veja o alarido que provoca.
E como se comportam os que dizem desejar a mudança? Respondem à política hegemónica do presente com as lógicas, as práticas e receitas do passado. Consideram inútil qualquer esforço para entender as novas condições de produção e reprodução dos discursos, das orientações e das mudanças materiais levadas a cabo pelo poder hegemónico. Acreditam que a história parou ou se repete, não valendo a pena o esforço de entender o novo porque «no fundo é tudo igual» e «si cambia il maestro di capella, ma la musica é sempre quella».
Algumas das formas de dominação são as mesmas, mas elas manifestam-se agora de forma nova. É necessário compreender a dinâmica onde a mudança ? e o sentido dela ? se combina com a permanência. Só assim se entenderão as novas lógicas de dominação existentes no capitalismo neoliberal. E entendendo-as se lhes dará resposta.
Os que contestam o modelo capitalista, sem se apoiarem em qualquer proposta verdadeiramente alternativa, só fomentam o individualismo, o abstencionismo, o «bota-abaixismo», a paralisia, o desânimo e a desistência da vida cívica e política. Não nos iludamos, se os anti-capitalistas não têm um projecto para resolver a crise actual do capitalismo, os neoliberais e neoconservadores têm-no.
O neoliberalismo e o neoconservadorismo são hoje projectos hegemónicos claros. São uma alternativa consistente à crise do capitalismo contemporâneo. Uma crise que os neoliberais não escondem e reconhecem como verdadeira. E respondem-lhe levando a cabo um profundo processo de reestruturação material e simbólica das nossas sociedades. O neoliberalismo é um projecto de classe que orienta de forma articulada um conjunto de alterações profundas nos planos político, económico, jurídico, cultural e educacional. Presa ao passado, é a este projecto actualizado que a esquerda não tem sabido responder.
A sociedade capitalista tem mostrado dinâmica e capacidade de se transformar. Desenvolve-se numa lógica de continuidades e rupturas. O capitalismo do século XXI encontrou formas de afirmação, de expressão e de sobrevivência impensáveis no século XIX e até ao último quartel do século XX. Ele criou novas formas de dominação e reproduziu o essencial das formas de dominação anteriores. No neoliberalismo, as formas tradicionais de dominação assumem características e formas historicamente renovadas. Os neoconservadores souberam actualizar e adaptar às novas necessidades as velhas formas de dominação. Foi essa capacidade de inovação, recriação, reinvenção ou reconfiguração que os que se lhe opõem não foram capazes de realizar. Reside aí o fracasso e a disfarçada rendição de alguma esquerda.
E voltamos ao início deste texto. O impasse em que hoje nos encontramos reside aqui. Há um número razoável de cidadãos que não se conformam com o poder hegemónico do sistema capitalista. Mas este tem sabido sobreviver. O campo dos que o contestam não é homogéneo. Mas nem na sua diversidade se soube construir um  projecto capaz de reconfigurar a sociedade e o Estado.
Em Portugal a situação é ainda mais grave. Às dificuldades da política-mundo junta-se a preguiça nacional. Tudo nos vem de fora, as teorias, as ideias, as metas e as ordens. O povo desanima. E como lamentava D. Francisco Manuel de Melo, em 1721, «Lástima é que para escolher um melão se façam mais provas e diligências da sua bondade que para um Conselheiro e para um Ministro». O Governo foi entregue a um bando de garotos e às respectivas namoradas e namorados. Para nos impressionarem compram gravatas ao preço do rendimento mensal de um pensionista. Para nos convencerem da sua idoneidade pintam algumas brancas nos cabelos? É preciso sair disto.
Aproveite-se o facto político de Fevereiro para dar um novo rumo ao país. Discuta-se a situação e o modo de sair dela.
E se nos locais de trabalho ou de residência criássemos ? chamem-lhe círculos, colectivos, clubes ? espaços de debate sobre as coisas mais desvairadas da sociedade? Porque não?


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 141
Ano 14, Janeiro 2005

Autoria:

José Paulo Serralheiro
Professor e Jornalista. Director do Jornal a Página da Educação.
José Paulo Serralheiro
Professor e Jornalista. Director do Jornal a Página da Educação.

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