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A matemática nos cartoons

Quando as garotas conquistam bons resultados em Matemática, isto é atribuído a esforço e dedicação. Quer dizer, elas se saem bem porque trabalham muito e obedecem regras. Por sua vez, ao justificar o sucesso dos meninos, seus professores e professoras invocam características como potencial, capacidade e brilhantismo.

Não nos surpreendemos quando crianças e adolescentes em idade escolar reclamam de terem de estudar Matemática, pois reconhecemos este saber pelos múltiplos sentidos historicamente construídos na cultura, que convergem em caracterizá-lo como um campo especialmente difícil. Ocorre que os conhecimentos matemáticos são tomados como complexos a priori e, conseqüentemente, os sujeitos bem sucedidos neste campo - que obtêm boas notas e se interessam por ele ­- são considerados gênios talentosos.
Walkerdine (1995), em sua pesquisa sobre garotas e a Matemática, nos mostra o quanto as descrições de professores e professoras sobre o desempenho de seus alunos e alunas são inteiramente construídas na cultura e diferenciadas segundo uma lógica sexista. Por exemplo, quando as garotas conquistam bons resultados em Matemática, isto é atribuído a esforço e dedicação. Quer dizer, elas se saem bem porque trabalham muito e obedecem regras. Por sua vez, ao justificar o sucesso dos meninos, seus professores e professoras invocam características como potencial, capacidade e brilhantismo. A pesquisadora afirma: ?é praticamente mais fácil para um camelo passar pelo buraco de uma agulha que uma dessas garotas ser considerada brilhante em Matemática? (p. 215).
Esses sentidos de complexidade do conhecimento matemático, de que Matemática seja algo para poucos ?iluminados?, entre outros equivalentes, fazem parte da cultura popular, continuam a ser produzidos e circulam quotidianamente, por exemplo, em cartuns, histórias em quadrinhos, bandas desenhadas, tiras, charges e outras historinhas publicadas nas páginas de jornais e revistas.
Na pesquisa A produção de significados sobre Matemática nos cartuns (Silveira, 2002), analisei cartuns e quadrinhos publicados em jornais, em revistas e na Internet. Nesse estudo, procurei mostrar, inspirada em teorizações do campo dos Estudos Culturais, que os cartuns, enquanto texto cultural, ensinam não só os conteúdos que eles abordam em seus argumentos, mas também muitas outras coisas. Em relação a um conjunto inicial de aproximadamente 160 cartuns que tratam de Matemática, apresentando em seus argumentos conteúdos da matemática escolar - simbologia da linguagem matemática, propriedades ou teoremas, problemas matemáticos, fórmulas e outros conhecimentos reconhecidos como típicos do saber, do raciocínio e do pensamento matemáticos ? defini, para fins de análise, três focos. No primeiro, a metanarrativa da onisciência, observei aqueles significados que conferem ao conhecimento matemático um caráter diabólico, complexo, inacessível, transcendental, totalizante, que apresentam a crença de que o mundo é matematizado segundo leis divinas. Em o gênero da Matemática, mostro aqueles que, opondo as mulheres aos homens, posicionam estes últimos num pólo privilegiado de raciocínio e aquelas num pólo oposto, deficitário, generificando a área da Matemática, definindo-a como masculina, assim como se generifica o trabalho docente como feminino. No terceiro foco, o terror das provas, identifiquei aqueles que se dedicam a mostrar os momentos de avaliação, nas aulas de Matemática, sempre povoados por sentimentos de desespero, medo, pavor e sofrimento.
Os significados sobre Matemática nos cartuns são aqueles mais ou menos recorrentes na cultura. É importante observar, contudo, que parece que eles contemplam um outro espaço de produção discursiva, distinto daqueles que prescrevem como devemos ser, buscando fixar condutas. Ao inscrever-se no território do humor, repetem esses discursos correntes para ironizá-los, satirizá-los, romper com suas lógicas, pois aquilo que evidenciam é mostrado de um jeito diferente, e nem sempre de um mesmo jeito. Como diz Larrosa (1998), ?o riso mostra a realidade a partir de outro ponto de vista? (p. 223). Dessa forma, os cartuns suspendem significados cristalizados no interior da cultura, e criam riso sobre eles, apontando para a possibilidade de outros significados. Se não são capazes de romper com uma lógica, usam ela mesma para mostrar sua incongruência.
Por isso, as análises realizadas sobre este material mostraram um jeito de compreender e representar a Matemática que tem repercussões na educação. Não penso que conhecer narrativas como essas ? que nos ensinam que Matemática é um campo difícil, complexo, abstrato, caracterizado predominantemente por qualidades que aprendemos a identificar como masculinas, e que é uma disciplina ?assustadora?, ?raladora?, responsável pelo fracasso de muitos estudantes ? inviabilize que professores e professoras façam uso desses textos culturais em sala de aula. Acredito, sim, que conhecer os saberes que circulam nesses discursos e as relações de poder que envolvem, nos fazem (re)pensar nossas práticas, por exemplo, incluindo em nossas preocupações a historicização que mostra a contingência dos significados produzidos na cultura. Por isso, nossa tarefa é manter as representações sob permanente desconfiança e vigilância, mostrando que aquilo que adquire estatuto de verdade é produto do poder, não resultando de uma suposta operação asséptica e neutra da racionalidade dita universal, natural e transcendental. As concepções arraigadas sobre matemática são um típico exemplo de como certos ditos vão sendo naturalizados, transformando cultura em natureza.

Referências Bibliográficas:

LARROSA, Jorge. Elogio do riso. In: ______. Pedagogia Profana. Porto Alegre: Contrabando, 1998. p. 208-228.
SILVEIRA, Márcia Castiglio da. Produção de significados sobre matemática nos cartuns. Porto Alegre: UFRGS, 2002. Dissertação (Mestrado) ? Programa de Pós-Graduação em Educação, Faculdade de Educação, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 2002.
WALKERDINE, Valerie. O raciocínio em tempos pós-modernos. Educação & Realidade, Porto Alegre, v. 20, n. 2, p. 207-226, jul./dez. 1995.

  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 136
Ano 13, Julho 2004

Autoria:

Márcia Castiglio da Silveira
Licenciada em Matemática e Mestra em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Investigadora do Núcleo de Estudos sobre Currículo Cultura e Sociedade ? NECCSO.
Márcia Castiglio da Silveira
Licenciada em Matemática e Mestra em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Investigadora do Núcleo de Estudos sobre Currículo Cultura e Sociedade ? NECCSO.

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