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"A nova Lei de Autonomia e Gestão reduz a democraticidade no interior das instituições"

Manuel Loff em entrevista à PÁGINA:

O ensino superior português atravessa actualmente transformações que irão, a breve prazo, redefinir o seu actual modelo de funcionamento. A crescente tentativa de empresarialização da gestão das universidades e politécnicos, consagrada através da nova Lei de Autonomia e Gestão, em análise no Parlamento, e as implicações do Tratado de Bolonha na reorganização das formações académicas, são dois dos temas em agenda que se assumem fundamentais para a sua evolução e o condicionarão num futuro próximo.
Para analisar estas e outras questões entrevistamos neste número Manuel Loff, professor auxiliar de História Europeia Contemporânea na Faculdade de Letras da Universidade do Porto e um dos mais jovens docentes a leccionar naquela instituição. Sem receio de causar polémica, Loff critica os velhos dogmas que continuam a marcar o ensino superior em Portugal, analisa o risco da limitação dos processos democráticos nos órgãos de gestão e comenta a instabilidade profissional docente que, na sua opinião, é fonte de situações "pouco éticas e que roçam a ilegalidade".

Como é ser-se um jovem professor do ensino superior público em Portugal?

Em primeiro lugar, a experiência de trabalho na área das ciências sociais é com certeza diferente das áreas onde a investigação e a ligação ao mundo empresarial é maior. Apesar da auto-representação que a Universidade do Porto faz de si própria como a maior do país, pelo menos em termos numéricos, não impede que ela esteja claramente longe do poder central; o único poder organizado e institucionalizado do qual ela está próxima é o poder empresarial do norte, mas, salvo raras excepções, para quem está ligado às ciências humanas essa proximidade não representa um valor acrescentado.
Depois, apesar de não estar propriamente em início de carreira e de já ter leccionado em outras instituições, considero que no ensino superior ainda se reproduz a lógica tradicional do valor intrínseco do tempo na evolução da carreira. Esta é uma profissão formal e teoricamente preenchida por momentos de avaliação, mas, de facto, sucede que a progressão é feita por tempo. Não é de forma alguma o critério mais relevante e mais justo e não é aquele que se deveria aplicar a uma área como a formação de quadros médios e superiores, especialistas e investigadores.

Qual seria, na sua opinião, o critério mais relevante?

Na minha opinião deverá ser a avaliação do desempenho e do trabalho científico. Teoricamente progredimos na carreira através da avaliação do trabalho científico, mas todos sabem que há doutoramentos, agregações e mestrados de qualidade muito variável. Além disso, não há verdadeiramente avaliação do desempenho do ponto de vista pedagógico.

Porque razão essa questão da avaliação não é pacífica?

Não é pacífica em toda a classe docente. Os professores, desde aqueles que leccionam no ensino básico, passando pelo ensino secundário e acabando no ensino superior, são uma classe que vive, na minha opinião, de uma espécie de estatuto de esquizofrenia, já que apesar de um dos aspectos centrais da sua actividade passar por avaliar outros, não admitem ser avaliados. É evidente que esta situação não pode ser generalizada, mas sabemos da incomodidade enorme que sempre produziu o fenómeno da avaliação na classe docente.

Serão os modelos ou o princípio que leva a essa resistência por parte dos professores?

A discussão sempre foi feita em torno dos modelos e da ideia de que todos eles permitiam o exercício de um certo arbítrio. Recordo-me da discussão em torno desta questão e de como se argumentava que ela poderia gerar situações onde as administrações das escolas, o ministério, enfim, o poder, poderia interferir no processo.
O problema, na minha opinião, está no princípio. Eu dei aulas de pós-graduação em administração escolar na Escola Superior de Educação do Porto e tive como formandos muitos professores e presidentes de órgãos de gestão de escolas, entre outros, e foi curioso verificar como aqueles que já são diplomados têm uma particular dificuldade em aceitar a ideia de voltarem a ser avaliados. E quando são professores a questão é incomparavelmente mais complicada. Muitos chegam a propor um acordo com o formador no sentido de este simplificar a avaliação, argumentando com o facto de já terem um diploma, de ocuparem determinadas funções ou mais simplesmente por pagarem propinas elevadas. Depois, as próprias instituições de ensino superior colaboram implicitamente com esta prática porque estão interessadas em captar o maior número possível de formandos nestas áreas.
Em Portugal, e falo em particular do ensino superior, os docentes podem desempenhar com altíssima ou baixíssima qualidade as suas funções e não existe, na prática, um mecanismo que os premeie ou sancione.

É, então, claramente a favor de um mecanismo de avaliação ?

Completamente, e considero, nesse sentido, que o mecanismo de avaliação institucional, as chamadas avaliações externas, são muito académicas e diplomáticas. As comissões de avaliação externa são excepcionalmente simpáticas - em alguns casos têm um parágrafo, em muitas páginas, que é desagradável sobre um determinado aspecto, mas na maior parte elas não têm servido para denunciar os problemas graves que se sabe existirem em determinados cursos e em determinadas instituições. E não tem produzido consequências visíveis porque está apenas consagrado formalmente na lei.
E, apesar de não promover as alterações necessárias, suscita ainda assim um discurso claramente corporativo, tradicionalista, de auto-defesa, muito típico dos professores, que, na minha opinião, faz parte de uma má sub-cultura docente, que defende ser sempre possível encontrar motivos para relativizar, retirar a objectividade, a cientificidade dos mecanismos de avaliação, apesar de quem o produz serem os mesmos que ao longo da sua vida profissional avaliam.

"Situações pouco éticas e próximas da ilegalidade"

A instabilidade profissional vivida pelos docentes no ensino superior é um tema pouco conhecido da opinião pública. Além de vínculos precários às instituições, os professores vêm-se a braços com o congelamento na admissão de novos efectivos nas universidades e politécnicos...

Sim. Exceptuando as áreas onde se estão a criar novos cursos, em que será eventualmente possível contratar mais pessoas, na maioria dos casos ? e essa é uma das desgraças actuais da universidade ? as novas ofertas curriculares fazem-se sempre à custa de pessoas que já existem. Já não sei onde li que 78% dos professores do ensino superior politécnico e universitário em Portugal não têm vínculo definitivo, o que coloca o ensino superior, pelo menos teoricamente, nos níveis de instabilidade laboral que se verificava no ensino secundário no pós-25 de Abril.

Que implicações traz esta situação ao funcionamento das universidades e politécnicos?

Esta situação tem um resultado altamente perverso - apesar de não conhecer a fundo os sistemas europeus, creio que Portugal é, de longe, o pior caso de todos -, já que, não tendo vínculo, os professores são habitualmente abusados do ponto de vista da prestação de serviço docente. Na maioria dos casos são os mais jovens, na dependência dos departamentos ? e, portanto, dos catedráticos para a renovação dos seus contratos ? quem mais sofre na pele este tipo de situação.
Um exemplo que se tornou prática corrente na generalidade do ensino superior é o facto dos professores assistentes passarem a professores convidados, vivendo na dependência daquele que o convidou, e por mais que se tente dar voltas torna-se evidente que vivendo nesta dependência está limitado nos seus direitos laborais, limitado na sua produção de opinião crítica, com sobrecarga de trabalho, sabendo, ao mesmo tempo, que poderá vir a ser premiado com a vinculação.
Esta, na minha opinião, é uma situação muito pouco ética e próxima da ilegalidade, porque, mesmo exercendo funções como convidado uma série de anos, basta-lhe concluir o doutoramento para assinar um contrato de professor auxiliar e retomar uma carreira que interrompeu há muito tempo; ou, pior ainda, nunca ter ganho um concurso para entrar na universidade e bastar-lhe fazer um doutoramento para entrar na carreira. No Politécnico do Porto, onde passei por essa experiência, praticamente não se abriam concursos para assistentes.

Apesar de ser uma situação que ocorre tanto no sector público como no particular, pode considerar-se que é uma prática não muito adequada a instituições dependentes do Estado...

Não conheço a fundo o funcionamento do sector particular, mas julgo que esta será uma situação generalizada. Suponho que no ensino particular a maioria das pessoas o admitirá segundo a lógica de que, funcionando como uma empresa, as pessoas podem fazer como melhor entenderem. Mas no ensino superior público esta prática é inaceitável.
E o mais desagradável é que conheço gente à esquerda e à direita, mais nova e mais velha, que assume esta lógica com naturalidade, naquilo que se pode considerar uma prática intergeracional e praticamente transideológica. A universidade tem uma moral e uma ética próprias que a tornam inaceitável numa instituição pública, que cumpre o bem público, mas que se auto-reproduz no seu interior com uma eficácia que é merecedora da análise dos sociólogos.

O Plano de Estabilidade e Crescimento decretado pelo governo limitou com certeza o funcionamento das universidades. De que forma sentiram os professores essa limitação orçamental?

Este PEC não é novidade nenhuma. Já nos governos de Cavaco Silva e António Guterres se tentou esta medida, mas não se cumpriram as metas apontadas pelos respectivos executivos.
Esta situação veio criar uma psicose de poupança a todo o custo onde a prioridade passa por salvar os móveis, isto é, quem está efectivo e quem tem poder não pode ver os seus interesses tocados. Pode dispensar-se quem não tem poder ou está em situações periclitantes e, evidentemente, cortar nas despesas de tudo o que signifique reestruturação interna, novas ofertas curriculares e alguma criatividade por parte das instituições.

Lei de Autonomia e Gestão limita a democracia no interior das instituições

Qual é a sua opinião acerca da nova Lei de Autonomia e Gestão para o ensino superior, actualmente em debate no Parlamento?

Conheço os traços gerais da nova Lei de Autonomia e Gestão e considero que eles vêm claramente no sentido de reduzir a democraticidade no interior das instituições. Creio que a actual geração presente no ensino superior irá pagar um preço alto, pretensamente decorrido de trinta anos de decepção face ao mau funcionamento da gestão democrática.
Em muitos sectores existe a ideia de que certos aspectos da democracia não funcionam e que, por isso, devemos limitá-la no sentido de melhorar a eficácia dos processos. Em nome de pretensos princípios de gestão mais expeditos entende-se que o melhor é limitar determinadas características e garantias como o equilíbrio entre os diferentes poderes presentes nas instituições e do facto de a gestão democrática ser forçosamente uma gestão negociada.
Mas, se repararmos, não é apenas a actual direita no poder que está a contribuir para esta situação. Há imensa gente à esquerda da actual direita completamente de acordo com isto. No fundo, as pessoas descobrem hoje um dos mais velhos princípios do autoritarismo. Estamos a pagar o facto de, ao longo de 30 anos, as pessoas não se terem empenhado o suficiente no funcionamento efectivo da gestão democrática das universidades.

Esta nova Lei de Autonomia e Gestão parece vir ao encontro da crescente tendência para a empresarialização das universidades, como a ela se referiu num artigo escrito Belmiro Cabrita, professor de Economia da Educação da Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade de Lisboa. Qual é o seu comentário?

Na minha opinião, essa tendência poderá levar a uma repetição do caso francês, que, apesar de sempre ter tido uma forte tradição de investimento público na investigação, com o governo de Raffarin viu os cortes nesta área aumentarem substancialmente e obrigou os investigadores a procurar financiamento alternativo junto do mundo empresarial.
A empresarialização parte do princípio que as instituições de ensino superior devem, em geral, ser geridas como empresas. Isto não é ideologicamente neutro, presume que a gestão do serviço público é democraticamente participada ? o que me parece bem ? mas presume ao mesmo tempo que a empresa não é uma estrutura democrática e que por não o ser é que as coisas funcionam.

Que comentário lhe merece o modelo de financiamento do ensino superior público preconizado pelo actual governo?

O ensino superior público teve uma fase de grande crescimento nos anos oitenta e principalmente nos anos noventa, que estagnou no final desta década e, consequentemente, baixou o nível de financiamento. A lógica dos governos em Portugal, quer o anterior quer o actual de direita, foi a de copiar o modelo de alguns países estrangeiros no sentido de associar os privados e os próprios cidadãos no financiamento directo do sistema, seja através das propinas seja através dos contratos universidade/empresas.
À parte das universidades que conseguem atrair contratos com o mundo empresarial, a estratégia criativa das restantes universidades portuguesas para conseguirem auto-financiar-se passa sobretudo pelo aumento do valor das propinas das licenciaturas e, principalmente, das pós-graduações, que representam uma fatia significativa do orçamento. Claro que desta forma estamos a elitizar cada vez mais a entrada na universidade, porque um jovem recém-licenciado sem emprego não vai com certeza ter dinheiro para pagar uma pós-graduação que pode atingir os dez mil euros.

O sistema de empréstimos preconizado pelo governo - e utilizado em países como a Grã-Bretanha - poderá constituir uma resposta viável?

Já em 1986, quando era dirigente associativo na faculdade de letras, recordo-me de o primeiro governo de Cavaco Silva apresentar essa ideia. O ex-ministro Couto dos Santos anunciava-a como uma grande novidade vinda de Inglaterra. Esta história tem vinte anos e agora está a ser retomada. Claro que este é um belo negócio para as instituições bancárias, mas a senhora ministra deverá saber tão bem quanto eu que existem relatórios que criticam essa opção, tomada por Margareth Thatcher nos anos 80 e 90.

Um dos principais objectivos do Tratado de Bolonha, tal como já admitiu a ministra Maria da Graça carvalho, passa por reduzir as licenciaturas para um período de três anos de forma a aumentar rapidamente a população activa na Europa. Será o melhor caminho?

Desde há muitos anos que se ouvem os especialistas em recursos humanos dizer que Portugal é um país com um número ainda muito reduzido de licenciados, um elevado número de pessoas desqualificadas e quase ninguém com qualificações médias. Teoricamente, isto poderia ser uma solução facilitadora.
As famílias investem cada vez mais na educação como uma arma para defrontar o futuro. Os jovens, por sua vez, vão ficar cada vez mais retidos, diria mais do que voluntariamente, em instituições de ensino. Mesmo que não gostem dele, os jovens vão procurar cada vez mais o ensino como uma ferramenta. Os jovens espanhóis e italianos, por exemplo, têm taxas de frequência universitária mais altas do que os portugueses porque desde os anos 80 vivem numa conjuntura de enormes taxas de desemprego juvenil e numa cultura social maioritária que vê a educação como um investimento.
Ao reduzir as licenciaturas para um período de três anos as universidades vão ter mais candidatos e aumentar a taxa de frequência, e aqueles que estudam já na universidade vão querer prolongar os estudos nos ciclos que se seguem ao primeiro diploma. Não nos admiremos se daqui a alguns anos a escolaridade obrigatória se estender à frequência deste primeiro ciclo de estudos no ensino superior, mais ainda tendo em conta a introdução do 12º ano como escolaridade obrigatória prevista na Lei de Bases da Educação.
Por outro lado, é preciso ter em atenção que o tratado de Bolonha não se assume como uma forma de responder a necessidades efectivas da sociedade, funciona numa lógica de harmonização de diplomas, de circulação de população activa no espaço comunitário.

E esses não são bons princípios?

Enquanto princípios, sim. Aliás, a harmonização das formações tem o efeito positivo de, quanto mais não seja, obrigar a quebrar certas rotinas e a fazer com que se explique porque razão é hoje inevitável demorar seis anos para ser médico - mesmo que seja uma formação teórica e não inclua a prática - cinco anos para ser arquitecto, cinco anos para ser engenheiro, quatro anos para uma licenciatura nas áreas sociais e humanas etc? e porque razão - e isso é que se torna difícil explicar - todos os recursos das universidades estão neste momento apontados para as formações ditas tradicionais, ou seja, tal qual elas hoje existem.

Entrevista conduzida por Ricardo Jorge Costa


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 136
Ano 13, Julho 2004

Autoria:

Manuel Loff
Professor de História Contemporânea, Fac. de Letras da Univ. do Porto
Ricardo Jorge Costa
Jornalista do Jornal A Página da Educação
Manuel Loff
Professor de História Contemporânea, Fac. de Letras da Univ. do Porto
Ricardo Jorge Costa
Jornalista do Jornal A Página da Educação

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