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Trinta anos depois do 25 de Abril: Quatro versões de uma revolução

O dossier de A PÁGINA tem neste número um formato um pouco diferente do habitual. Para assinalarmos o trigésimo aniversário da revolução que marcou a história do Portugal contemporâneo, fomos ouvir quatro gerações de portugueses - a que participou directamente nos acontecimentos, a que nasceu por altura da revolução e as gerações de 80 e de 90 - procurando saber, trinta anos depois, para que serviu afinal o 25 de Abril? E o País: mudou para melhor ou para pior? Ficam os testemunhos.

Há trinta anos, numa madrugada sem chuva, Portugal acordava para um dia que iria mudar a sua face. Estava-se a 25 e o mês era Abril. Na rádio ouvia-se "E Depois do Adeus", de Paulo de Carvalho. Algumas horas mais tarde, vivia-se nas ruas a confusão própria de um período revolucionário em curso. Pois é: já passaram três décadas desde a revolução dos cravos, mas a memória daquele que é um dos mais significativos acontecimentos históricos do país continua bem vivo no espírito de muitos portugueses.
Ainda vivo em Carlos Maia, por exemplo, na altura um jovem de 22 anos militante do Partido Comunista dos Trabalhadores Portugueses/ Movimento Revolucionário do Proletariado Português, crente nos ideais revolucionários e na soberania popular como único meio de dar um novo rumo ao país. ?Era um tempo de poesia ? a célebre frase inscrita no quadro de Vieira da Silva 'A poesia está na rua'  reflecte muito bem o espírito que se viveu nesse período ? e de esperança no futuro?, diz com alguma melancolia à mistura.
Trinta anos depois, admite que o optimismo deu lugar à decepção. ?Vivemos numa democracia, que era a principal aspiração do povo português, mas ficou-se, na minha opinião, aquém daquilo que se ambicionava: uma verdadeira democracia popular, onde os cidadãos participassem activamente na vida política e decidissem por si o que considerassem mais conveniente para o país. Hoje em dia não é isso que acontece, e a elevada abstenção nas eleições é disso um reflexo?.
Uma visão diferente da de António Narciso, 54 anos, gerente comercial, que confessa não ter entrado em grandes entusiasmos político-partidários e encarado com alguma reserva a situação que se gerou no pós 25 de Abril.
Recorda que foi uma altura muito confusa, com as diferentes facções partidárias a confrontarem-se de forma violenta, e chegou mesmo a temer por uma guerra civil. ?Ainda bem que houve bom senso, mas correu-se um sério risco de confronto armado generalizado e de uma ditadura de esquerda chegar ao poder?.
Desde então, considera que o país evoluiu para uma situação estável e acredita mesmo que Portugal deu uma lição de civismo ao mundo, mostrando como se pode transitar pacificamente de uma ditadura para uma democracia. ?Em muitos outros países uma revolução como a nossa teria terminado num banho de sangue, mas os portugueses são um povo pacífico e mostraram como, mesmo com divisões, se consegue chegar a um consenso para atingir o bem comum".
Apesar de ser favorável a um regime democrático, considera que na ditadura de Salazar não se vivia a  "bandalheira" que hoje se verifica no país, dando como exemplos a subida da criminalidade e a corrupção generalizada, inclusivamente entre aqueles que, na sua opinião, deveriam estar acima de qualquer suspeita: a classe política.
A avaliar pelas respostas dadas ao longo do inquérito que A PÁGINA conduziu junto da geração que viveu o 25 de Abril, a decepção face aos objectivos preconizados pela revolução contrasta com a opinião de que o país soube consolidar a democracia conquistada em 1974.
Em geral, a avaliação mais negativa incide sobre a actuação da classe política. É ela que recolhe um maior número de críticas e sobre quem recai a responsabilidade de o país não ter conseguido aproveitar duas das maiores oportunidades na sua História ? a revolução e a entrada na União Europeia - para se pôr a par dos restantes países europeus.
?Após o período conturbado que se seguiu ao 25 de Abril houve uma esperança genuína de que o país pudesse recuperar o atraso que nos caracterizava. E, em parte, conseguimo-lo. Mas muito ficou por fazer e, nesse sentido, os actuais políticos, que foram os mesmos que na altura também contribuíram para a revolução, não souberam estar à altura das aspirações dos portugueses?, diz Fátima Costa, 48 anos, professora do ensino secundário, que na altura ?pouco percebia de política? mas sabia que algo de decisivo estava a marcar o país.
Apesar de nos anos seguintes à revolução ter participado activamente na vida política e de ter inclusivamente integrado listas eleitorais de um partido que prefere não designar, Fátima Costa admite ter deixado de acreditar no sistema político e hoje em dia já não exerce sequer o seu direito de voto.
?Sentia que estava a contribuir para a manutenção de um sistema viciado?, refere num tom de lamento. Uma decepção que se estende também à geração do 25 de Abril que, na sua opinião, se ?aburguesou? e esqueceu alguns dos valores que lhe eram caros na altura da revolução. ?Se calhar, a juventude de hoje deveria fazer outra revolução?.

Geração de 74:
"Portugal foi um exemplo de transição para a democracia"

Cláudia Pereira nasceu em pleno ano da revolução. E conta uma história curiosa: ?a minha mãe sentiu uma alegria muito grande quando se deu o 25 de Abril e diz que eu sou bonita porque essa felicidade foi transposta para mim quando ainda estava na barriga dela. Parece maluquice, mas ela acredita nisso??, diz com um largo sorriso, parecendo ela própria acreditar, de certa maneira, na história da mãe.
As memórias mais antigas desta jovem farmacêutica recuam ao início dos anos oitenta e estão associadas principalmente à indumentária da altura: roupa justa, cabelos compridos, calças boca-de-sino e óculos com lentes enormes, "daqueles que fazem lembrar os olhos de uma mosca", explica com as mãos postas em torno dos olhos.
"É curioso verificar como muitas dessas coisas se voltam hoje a usar?, diz, recordando também alguns murais - que entretanto desapareceram das paredes da cidade - com inscrições de propaganda política, ?com muitas foices e martelos à mistura?.
?Portugal está muito diferente do que era, mas não sei se evoluiu no melhor caminho: hoje temos estradas que nos ligam a todo o lado e montras cheias de coisas bonitas, mas nem toda a gente tem acesso a elas?.
Opinião contrária tem Pedro Queiroz, técnico de seguros, nascido em 1975, para quem o país foi um exemplo do que deveriam ser todas as transições de sistemas ditatoriais para a democracia. ?Se não tivéssemos sido um exemplo nunca teríamos entrado para a União Europeia praticamente dez anos depois da revolução?. E não tem dúvidas em afirmar que, se o 25 de Abril não tivesse ocorrido em 1974, "mais cedo ou mais tarde os portugueses iriam acordar para a necessidade de transição e de modernização do país".
Embora admita que nem tudo tenha corrido como provavelmente teriam esperado os revolucionários da altura, garante que o país soube aproveitar a oportunidade de integrar um grande bloco económico e assume-se hoje como um "país moderno".
Mais cauteloso na sua análise, Vítor Costa, 34 anos, técnico oficial de contas, considera "enganosa" a liberdade de expressão trazida pelo 25 de Abril porque, justifica, a comunicação social, apesar de não ser censurada como há trinta anos, "fala apenas sobre aquilo que vende e não sobre aquilo que é necessário". Além disso, acrescenta, o poder económico caiu novamente nas mãos dos poderosos e isso é um facto que, indirectamente, "limita a liberdade dos cidadãos".
Partindo destes argumentos, Costa conclui que o 25 de Abril, afinal, "não valeu tanto a pena como isso", porque além de as pessoas não terem adquirido noção de "onde começa e acaba a liberdade", de que vale uma revolução quando nem a própria Constituição da República dela saída é respeitada? Isto, justifica, porque nela se fala de liberdade de expressão e de responsabilidades do Estado, mas este tem vindo a privatizar as suas responsabilidades em áreas tão fundamentais como a saúde, a educação ou a habitação, que na altura da revolução eram consideradas pilares fundamentais da democracia emergente.

Geração de 80:
"Políticos fazem parte do problema, não da solução"

Apesar de terem nascido alguns anos após a revolução, os jovens da geração de oitenta parecem ter um razoável conhecimento das causas que estiveram na origem do 25 de Abril e do próprio desenrolar dos acontecimentos.
Mais ainda se estivermos perante duas estudantes de sociologia como Márcia Oliveira, 22 anos, aluna da faculdade de letras da Universidade de Lisboa, e Daniela Santos, 23 anos, aluna do mesmo curso da Universidade do Porto, a quem questionamos qual seria a maior conquista de Abril. Na opinião das duas amigas a resposta é consensual: a liberdade de expressão e de associação política. Mas se em relação à primeira o pressuposto permanece válido, já em relação à segunda instalam-se certas dúvidas sobre a sua utilidade.
?Agora pode-se votar no partido da nossa preferência, mas essa liberdade não implica necessariamente que estejamos a votar nas propostas que nos parecem mais adequadas e nem sempre temos a garantia que as promessas eleitorais são cumpridas?.
Isto, explica Márcia Oliveira, porque os partidos políticos estão condicionados por factores que eles próprios não controlam, principalmente aqueles que se prendem com o contexto internacional e que determinam indirectamente a sua linha de actuação?. Assim sendo, conclui, a liberdade de voto não passa de um ?exercício de legitimação do poder?.
Além disso, sublinha, ?os políticos que agora governam o país, que são os mesmos que fizeram o 25 de Abril, têm demonstrado, infelizmente, que fazem mais parte do problema do que parte da solução para os problemas que afectam Portugal?.
Daniela Santos não só subscreve a opinião da amiga como sublinha o papel negativo da classe política portuguesa na condução da vida do país nos últimos trinta anos. Na sua perspectiva, Portugal perdeu uma excelente oportunidade de modernizar o seu aparelho produtivo e de investir na promoção da educação e das áreas sociais com as verbas provenientes da União Europeia, que, na sua perspectiva, foram ?mal distribuídas?.
Assim, diz, ?o país tem hoje muitas auto-estradas mas isso não resolveu as graves carências que o país sente em termos de qualificação da população activa e da prestação de serviços básicos. E isso, parecendo que não, também limita a liberdade das pessoas?.
Apesar de não ter a mesma opinião de Márcia e Daniela sobre a forma como a revolução influiu no desenvolvimento do país, Filipe Carvalho, 24 anos, concorda com o facto de a revolução de Abril ter sido um marco histórico que permitiu transformar o país.
Assim, para este finalista do curso de engenharia mecânica da Universidade do Porto, o 25 de Abril é a data mais significativa do século XX português na medida em que é ela que inaugura a era do ?Portugal moderno e democrático?. Ao contrário das duas estudantes de sociologia, considera que ?o progresso do país é indiscutível? e que, hoje em dia, os portugueses têm acesso a bens e serviços até então vedados à maioria, nomeadamente na área da saúde e da educação.
?A democracia é um sistema justo e funciona. Portugal é prova disso. Claro que não é perfeito e pode mesmo criar algumas distorções, mas quem não está de acordo com ele que invente um melhor??.

Geração de 90:
"25 de Abril foi uma espécie de guerra que se passou há muitos anos"

A geração nascida nos anos noventa pouco sabe do 25 de Abril. A maior parte dos miúdos entrevistados pela PÁGINA ouviu falar de uma revolução com ?flores?, que até houve tanques na rua, mas poucos conhecem as motivações que estiveram por trás dela.
Reunidos à porta da Escola Básica de 2º e 3º ciclo Gomes Teixeira, no Porto, um grupo de três amigos fala sobre a façanha do Futebol Clube do Porto que, na noite anterior, tinha eliminado o Manchester United da Liga dos Campeões em futebol. Entusiasmados com a conversa, pouco atenção dão ao jornalista quando este os questiona sobre a revolução dos cravos. ?Já vi imagens na televisão, mas não me lembro ao certo o que aconteceu?, diz Pedro Dias, 11 anos, enquanto olha distraidamente para a bola de futebol que vai rodando sobre as mãos.
?Havia um presidente que se chamava Salazar e depois vieram os tropas com tanques para a rua, mas não sei o que se passou depois disso?, explica por sua vez o Pedro Oliveira, da mesma idade, olhando para o amigo ao lado ? Daniel Costa, um ano mais velho do que os dois - como quem pede ajuda para terminar a história. ?Eu também já vi imagens na televisão e acho que foi uma espécie de guerra que se passou há muitos anos. Para quê não sei, mas tem a ver com política??.
Quase ao lado, duas miúdas ouvem com curiosidade a conversa e decidem intervir. ?O 25 de Abril serviu para trazer liberdade às pessoas, porque antes não se podia falar sobre tudo o que quiséssemos?, explica Catarina Figueira, com 12 anos, a quem os pais já lhe tinham falado sobre o assunto. A amiga, um ano mais nova, não sabia disto, mas, à semelhança dos colegas rapazes, já tinha visto imagens na televisão de soldados nas ruas e pessoas que lhes estendiam flores vermelhas. ?Em que ano foi? Não me lembro??.
Joana Amaral é aluna do 2º ciclo na mesma escola e é a que melhor parece conhecer os factos que estiveram na origem da madrugada que mudou o curso da história recente portuguesa. A formação política dos pais - a Joana diz que ?eles são de esquerda?  ? ajudou-a, na sua opinião, a saber mais do que a maioria dos colegas. Então, afinal de que se tratou? ?O 25 de Abril foi uma revolução que derrubou a ditadura e trouxe a liberdade às pessoas?, sintetiza Joana.
Na escola, porém, ela diz que ?pouco se aprende? sobre a data. No ano passado a professora de História falou-lhes sobre o assunto mas não ficou a saber muito mais em relação àquilo que os pais já lhe tinham explicado. ?Ainda por cima foi uma ?seca?, porque não havia imagens, a professora só falou e a maioria dos colegas estava distraído?.
É notório que quando se fala sobre a revolução de Abril os miúdos a associam a política e parecem, por isso, não lhe atribuir grande importância. Isso mesmo transpareceu da conversa que a A PÁGINA manteve com outros dois miúdos da geração de 90, que encontrámos a estudar na biblioteca Almeida Garrett.
?O 25 de Abril foi um golpe de Estado do exército para derrubar a ditadura?, afirma João Meireles, aluno do 7º ano, para quem este facto histórico está relacionado com a política e ele confessar que essa matéria não lhe interessa.
?A política é uma ?seca? e eu acho que nunca vou votar?, diz com uma certa indiferença, argumento aproveitado pelo jornalista para o questionar sobre se essa própria liberdade de escolha está ou não directamente relacionada com os próprios princípios da revolução. ?Nunca tinha pensado nisso, mas talvez esteja... Antes não se podia votar livremente, agora pode?.
O Pedro Tavares, colega de turma do João, garante, à semelhança do amigo, que também ele nunca irá votar. É que, na sua opinião, "os políticos prometem e nunca cumprem", pelo que não vale a pena o esforço. Mas e se todos deixassem de votar, como era? "Não sei, mas pelo menos na televisão deixava de se falar tanto na política e podiam passar mais filmes...".

Depoimentos recolhidos por Ricardo Jorge Costa


  
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Edição:

N.º 133
Ano 13, Abril 2004

Autoria:

Ricardo Jorge Costa
Jornalista do Jornal A Página da Educação
Ricardo Jorge Costa
Jornalista do Jornal A Página da Educação

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