NESTE PAÍSCada escola, apesar das evidentes semelhanças, transporta em si uma atmosfera que lhe é específica e que seria míope e preguiçoso reduzir a um conjunto de leis ou determinações mais vastas.Sempre que posso, desloco-me a escolas para debater ora com alunos, ora com professores, ora com ambos, questões que me são propostas. Apesar de existirem elementos de forte inibição, como o controle explícito ou implícito, objectivo ou subjectivo de uns sobre outros; o reduzido tempo disponível para abrir «feridas» e nelas tocar, demoradamente; a imagem associada à margem de poder que me é automaticamente atribuída pela categoria (ou melhor: classificação) de «especialista» (uma espécie de soberano sobre uma determinada parcela do real) ou ainda, mais recentemente, o estatuto de deputado, tento, com o entusiasmo que os dias me permitem, criar dinâmicas de interacção. Cada cenário é distinto e irrepetível, cada escola, apesar das evidentes semelhanças, transporta em si uma atmosfera que lhe é específica e que seria míope e preguiçoso reduzir a um conjunto de leis ou determinações mais vastas. A uma das escolas fui há poucas semanas falar de «afectos», tendo como pano de fundo a recente comemoração do dia de São Valentim. Tarefa arriscada, terreno minado? Em frente. Referi aos alunos como, nos dias que correm, o «individualismo afectivo» e a pluralidade de modalidades conjugais substituem a normatividade outrora imposta (prescrita) pelos costumes locais, pelo parentesco e pela religião (creio ter dito estes conteúdos por palavras mais simples...). Falei, também, seguindo Giddens, que, hoje, as dimensões mais recônditas da intimidade (como a auto ou heteroimagem do corpo) se encontram profundamente associados ao funcionamento global das sociedades. Entretanto, chagados ao debate, depois de muita timidez e olhares que se iam baixando, como faróis à aproximação de um carro, começaram a brotar, aqui e ali, as perguntas. Perguntar é sempre desafiar o medo. Um dos alunos, em voz baixa, questiona-me: «será que quando existe violência doméstica, a mulher, que é vítima, tem o direito de se divorciar?». Uma rapariga, um pouco mais distanciada, dispara: «Acha que devemos perdoar, numa relação?». Enquanto respondia, mal tinha tempo para pensar. Mas ia-me apercebendo, imperceptivelmente, que, por detrás dos silêncios de todos os dias, se escondem pequenas angústias ou grandes sofrimentos. O rapaz que me perguntara algo para mim tão óbvio (claro que a mulher se deve divorciar, se for vítima de violência!) exigia que eu compreendesse um eventual quotidiano de miséria humana (uma mãe frequentemente espancada pelo pai?) e, mais ainda, a relutância em aceitar como legítima, mesmo à luz dessa situação, o rompimento do laço conjugal ? o tal que, segundo os rituais católicos, jamais deverá ser quebrado. A rapariga que falara do perdão não pretenderia insinuar, subtilmente, a lógica tão persistente de que, perante os desvarios masculinos, tão tolerados e permitidos, o perdão permanente, por parte da mulher, não seria a abdicação de um projecto de vida autónomo? Um país ainda tão diverso, apesar do processo de urbanização e litoralização, da integração global das economias e dos sistemas de informação, da compressão do espaço-tempo e das acessibilidades moderníssimas...Escolas tão diferentes, alunos singulares, a exigirem respostas permanentemente inventivas e renovadas. Para além de tempo, espaços livres de conversa e confronto de visões do mundo.
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