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O Estado interferente

Em Portugal há sinais de emergência de um Estado interferente na área do ensino superior.(?)
O sector privado cresceu de forma desordenada, sem atenção a padrões mínimos de qualidade, e o governo foi incapaz de prever, em tempo útil, a crise resultante do decréscimo do número de candidatos ao ensino superior.

Com a massificação do ensino superior assistiu-se, na maioria dos países Europeus, ao que Neave e van Vught chamaram de uma mudança do modelo tradicional de ?controlo pelo Estado? para um modelo de ?supervisão pelo Estado?. Em Portugal, a aprovação da Lei de Autonomia das Universidades pela Assembleia da República (Lei 108/88, de 24 de Setembro) traduz esta redefinição das relações entre as universidades e o Estado: as instituições adquirem autonomia e o Estado passa a regular à distância, deixando de interferir nas decisões da vida diária das instituições. Alguns autores, com grande argúcia, consideram que a condição necessária para o êxito deste novo modelo de regulação reside na capacidade de liderança por parte do governo, único actor com poder de coordenação na sociedade.
Na África do Sul, a Comissão Nacional para o Ensino Superior defendeu que a transformação do papel do governo de controlador para o de um parceiro, embora com poderes especiais, exige, para ter êxito, quatro condições:

a) a existência de um quadro de funcionários competentes;
b) a existência de um plano coerente de desenvolvimento socio-económico e de recursos humanos;
c) autonomia e independência em relação aos interesses privados;
d) a actuação do Estado como um intermediário honesto nas relações de cooperação entre os domínios público e privado.

Nenhuma destas condições se verificava quando a Lei de Autonomia foi aprovada, o que criou um cenário de desastre. O Ministério não tinha capacidade técnica para responder à transição do modo de regulação e os seus serviços, em vez de cooperarem com as instituições, assumiram-se como últimos defensores do bastião da burocracia estatal. É bem conhecida a incapacidade do Estado português para planear a médio/longo prazo, preferindo actuações casuísticas, influenciadas por grupos de pressão. Muitas instituições privadas convidaram para docentes figuras da cena política (ex-ministros e membros proeminentes dos partidos), adquirindo um grande poder de lobbying, contrário ao princípio da autonomia e independência do Ministério em relação aos interesses privados. Finalmente, o governo nunca assumiu uma posição de intermediário honesto entre os interesses dos domínios público e privado, tendo oscilado entre o favorecimento descarado do sector privado e a publicitação da falta de confiança do governo na qualidade do ensino privado.
Nestas condições, não admira que tenha acontecido um desastre. O sector privado cresceu de forma desordenada, sem atenção a padrões mínimos de qualidade, e o governo foi incapaz de prever, em tempo útil, a crise resultante do decréscimo do número de candidatos ao ensino superior, o que criou uma situação de grande excesso de capacidade do sistema, o que criou uma competição feroz pelos alunos e grandes dificuldades de sobrevivência para muitas instituições. Como irá o governo resolver este problema?
A verdade é que a crise actual teve como origem principal a incapacidade do Estado de regular à distância, ou seja, a dificuldade de o Estado passar de um modelo de controlo para um modelo de supervisão. Foi concedida autonomia às instituições sem que o Estado possuísse a tecnologia necessária para regular à distância, o que levou o sistema a uma situação insustentável. Nestas condições, e como referem alguns investigadores sul-africanos, o Estado adopta, por vezes, um modelo de ?Estado interferente?, caracterizado por formas arbitrárias de intervenção com o objectivo de ultrapassar algumas situações de crise mais graves. As acções do Estado, ou são esporádicas, ou transformam-se numa tentativa de conseguir a submissão das instituições por meio de um conjunto de medidas legislativas pouco subtis. Segundo Kraak, este é o sinal de um Estado fraco e incapaz de atingir o nível de sofisticação necessário para regular o sistema à distância, pelo que regressa a um conceito de Estado burocrático e normativo para obter algum controlo sobre um sistema em crise e nada funcional.
Em Portugal há sinais de emergência de um Estado interferente na área do ensino superior. Medidas recentes como a apropriação indevida dos saldos das instituições do ensino superior, a publicação da Lei 1/2003, de 6 de Janeiro, que reduz a autonomia pedagógica das universidades públicas (aliás, na sequência do que o governo socialista já tinha feito com a Lei 26/2000, de 26 de Agosto), a possibilidade conferida ao Ministro de poder fechar institutições e/ou cursos e as decisões pouco claras de reduzir os numeri clausi em algumas universidades são indícios deste nova forma de relacionamento do Estado com as institutições de ensino superior.
Portanto, podemos considerar que, apesar de alguma retórica próxima da Nova Gestão Pública e de uma promoção dos valores de mercado, a verdade é que estes sinais são anulados por um avanço decisivo no sentido de um modelo de Estado interferente, em que a maior intervenção da burocracia de Estado é contraditória com a retórica de menos Estado e mais mercado.


  
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Edição:

N.º 130
Ano 13, Janeiro 2004

Autoria:

Alberto Amaral
Centro de Investigação de Políticas do Ensino Superior
Alberto Amaral
Centro de Investigação de Políticas do Ensino Superior

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