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Maria...

TODOS OS DIAS VEMOS ATRAVÉS DA TELEVISÃO, OU LEMOS ATRAVÉS DOS JORNAIS, NOTÍCIAS QUE ABORDAM A REALIDADE DOS ABUSOS SEXUAIS. EU, INFELIZMENTE, PARA ALÉM DE TER CONHECIMENTO DESTAS SITUAÇÕES PELOS MEIOS DE COMUNICAÇÃO SOCIAL, CONTACTEI BASTANTE DE PERTO, DURANTE O ANO LECTIVO ANTERIOR, COM UM CASO.

É uma menina e chama-se Maria, tem nove anos e é proveniente de um meio socioeconómico bastante pobre e degradado. Vivia com o pai e com a avó, os dois alcoólicos, numa casa sem as mínimas condições de higiene.
A Maria foi abandonada pela mãe aos 16 meses de idade. Esta, quando foi embora levou consigo um irmão da Maria mais velho que ela.
Pelo contexto familiar, a Maria sempre foi uma criança que esteve entregue apenas à sua sorte, não tendo ninguém que se preocupasse com ela, com as suas necessidades ou com a sua educação.
Deste modo, o seu desenvolvimento pessoal e social ficou comprometido, sendo uma criança demasiado carente de bens materiais mas principalmente carente de valores e de afecto.
Quando conheci a Maria, conheci uma criança muito fechada em si e nos seus problemas, irrequieta, perturbadora, desconcentrada, desobediente e com muito pouco interesse pela escola e pela necessidade de aprender. Apesar de estar matriculada no 3.º ano de escolaridade, ainda não tinha realizado a aprendizagem da leitura e da escrita. Por isso, tive necessidade de começar quase do início, tal como se a Maria estivesse pela primeira vez na escola. Ao longo do tempo a minha proximidade com a Maria foi aumentando e a determinada altura senti que eu era muito importante para ela, talvez por ser adulta e ela sentir que eu a amava.
No decorrer do 2.º período descobriu-se que a Maria era vítima de abuso sexual e que esse abuso já durava há dois anos... eu pensei...
Como é que a Maria pode ser diferente?
Como podemos nós querer que a Maria aprenda a ler, a escrever e a contar se tem necessidades muito maiores?
Como podemos querer que a Maria se lave, se penteia, que tenha gosto no seu corpo, se ninguém lhe mostrou que ficamos mais bonitos lavados e penteados e se frequentemente usam o seu corpo, não a deixando descobrir a sua beleza?
Como pode a Maria ser uma criança mais aberta e confiante se sente que não pode confiar nos outros porque todos os dias a desrespeitam e abusam dela?
A Maria é uma criança entre muitas que vivem este grande drama... vítimas de uma sociedade que não ama, que não olha o outro mas simplesmente o usa em seu proveito próprio.
A Maria é mais uma criança que precisa não de ser rotulada como desgraçada, mas que precisa de ser amada e apoiada durante toda a sua vida. Esta criança tem direito a ter todas as condições para poder levar uma vida digna não perpetuando pela vida fora  marcas e consequências da injustiça e do crime de que foi vítima.
Sei que é difícil apagar as marcas destas circunstâncias pois não existem borrachas para apagar episódios da vida, como existem para apagar as palavras e as operações que por distracção não se fizeram tão bem...
Senti muitas vezes a rebeldia do temperamento da Maria, mas também senti muitas vezes os seus abraços quando me pedia desculpa ou quando me dizia, longe das outras crianças, que não queria ir para uma instituição.
Certo dia, estive uma hora para que a Maria me escrevesse meia dúzia de palavras, mas muitas vezes, bastavam alguns segundos para que os olhitos dela brilhassem, especialmente, quando recebia pinta verde na leitura ou quando levava ?Parabéns? escrito no caderno...
Não sei ao certo o que aconteceu à Maria, mas sei que aprendi muito com o facto de a ter conhecido, pois senti mais a minha responsabilidade como educadora. Senti que os professores têm um papel preponderante na comunidade em que trabalham pois podem ser verdadeiros actores de mudança. Podem contribuir de uma forma verdadeira para a construção de uma sociedade em que todos tenham vez e voz, especialmente os mais frágeis, nomeadamente as crianças. A nossa missão é fazer crianças felizes... aprendi isto no estágio, na Escola da Ponte, em Vila das Aves, e redescobri isto com a Maria.
Este é um pequeno registo da minha pequena vida de professora, mas que fica como uma grande aprendizagem para a minha vida.


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 128
Ano 12, Novembro 2003

Autoria:

Maria das Neves Jesus
Professora do primeiro ciclo do ensino básico, São João de Ver
Maria das Neves Jesus
Professora do primeiro ciclo do ensino básico, São João de Ver

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