Ao contrário do que se afirma na exposição de motivos, a Proposta de Lei de Bases da Educação apresentada pelo XV Governo Constitucional representa uma ruptura face à Lei de 1986. Na impossibilidade de proceder aqui a uma análise exaustiva em termos comparados, sugere-se que o leitor realize esse exercício por sua conta, observando três dos pilares fundamentais sobre os quais assenta a Proposta governamental: o individual, o vocacional e o gerencial. Tópicos centrais às políticas conservadoras na Europa e nos EUA, no seu apogeu no momento em que a Lei de Bases de 1986 era aprovada em Portugal, aqueles princípios conhecem agora a sua consagração jurídica entre nós; vinte anos após a sua emergência nos países centrais, desprezando-se as críticas de que foram alvo, os efeitos que produziram e até mesmo os recuos de que por vezes foram objecto, como o atesta a investigação académica de circulação internacional. Invocando uma perspectiva personalista, pretensamente inerente à sociedade do conhecimento, a Proposta adopta a visão liberal de um cidadão dinâmico e correctamente informado, para o responsabilizar pelas suas escolhas, pela aquisição de competências e aptidões conducentes à competitividade, à flexibilidade e à adaptação. Toda a pressão colocada no indivíduo, já em boa parte conceptualizado como cliente e consumidor, naturalizando a igualdade de oportunidades e recursos, e a opção por estratégias autobiográficas de formação para a competição. É a nova Pedagogia Contra o Outro, em busca da aquisição de competências para competir. E é desde uma lógica individualista, de emulação e de competitividade, que os princípios da livre escolha transparecem e com eles a valorização, sem precedentes, do ensino privado. O próprio conceito e imperativo constitucional (Artigo 75º) de rede de estabelecimentos públicos respondendo às necessidades de toda a população, é substituído pelo de ?rede de ofertas educativas?. A ideologia da aprendizagem ao longo da vida, responsabilizando apenas o indivíduo pelas suas boas ou más escolhas no mercado educacional, vem transformando a educação numa vantagem competitiva e num instrumento de gestão de recursos humanos. Não surpreende, por isto, a total ausência do conceito de Educação de Adultos, visto como uma reminiscência social-democrata, típica de um Estado-Providência que se pretende reformar, como se alguma vez o tivéssemos experimentado cabalmente. A formação vocacional surge como paradigma, também na escolaridade obrigatória. Continua a ideia de que a formação vocacional e a formação profissional serão a solução para o atraso do país, sem perceber que o nosso drama é o da continuada falta de um povo educado e escolarizado, problema que se deve a elites historicamente descomprometidas com a democratização da educação e a escolarização dos seus concidadãos. E o fenómeno persiste, re-elitizando certos níveis e modalidades de educação e apostando em formações mais funcionais, diversificadas e pragmáticas, em boa parte excluindo os adultos menos escolarizados. Preparando as novas gerações para um trabalho futuro que no futuro existirá cada vez menos ou não existirá mesmo. E fazendo-o precocemente, quando a partir do 7º ano de escolaridade se integrarão ?áreas vocacionais diversificadas?. Na escolaridade obrigatória como no ensino superior, o princípio vocacionalista imprimirá as suas marcas, diferenciando, hierarquizando e legitimando formas de regulação típicas dos mercados. Numa complexa combinação de individualismo (contra a colegialidade) e de vocacionalismo e profissionalismo estrito (contra a democraticidade e a participação) emerge o pilar gerencial. O grande problema da educação portuguesa não é um problema de valores, políticas e objectivos, nem sequer de recursos, como se tivéssemos investido na educação como outros países europeus ao longo do século XX. O nosso problema é essencialmente de gestão, de racionalização e modernização. A gestão democrática das escolas é, portanto, uma das principais causas recentes do nosso atraso, pelo que os órgãos colegiais eleitos deverão ser substituídos por órgãos singulares, designados por outros processos e até em função do projecto educativo apresentado por cada candidato a gestor, como se aquele projecto pudesse deixar de ser uma construção colectiva e democraticamente produzida. Ao transferir a participação democrática de professores, alunos, pais e pessoal não docente dos órgãos de direcção e gestão das escolas (Constituição, Artigo 77º) para ?serviços especializados? e ?órgãos consultivos? (Proposta, Artigo 44º, 5), a Proposta rompe com a Constituição da República (e com a actual Lei de Bases, Artigo 45º, 4) mas, sobretudo, adopta uma lógica gerencialista e tecnocrática, fazendo evacuar a democracia das escolas portuguesas. Mas mais vale menos democracia do que democracia a mais, segundo a tradição portuguesa que está na origem do nosso atraso secular, também na educação.
|