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Alfabetizando em Música na Escola

?A gente sempre deve sair à rua como quem foge de casa
Como se estivessem abertos diante de nós todos os
caminhos do mundo.? 
            (Mário Quintana)

COMO PROFESSORA DE MÚSICA DE UMA ESCOLA PÚBLICA, VENHO ME INSPIRANDO COTIDIANAMENTE NAS PALAVRAS DO POETA, EXERCITANDO, JUNTO DOS MEUS ALUNOS, A ESCUTA DOS CAMINHOS «SONOROS» DO MUNDO.

Tratar da escuta do mundo significa investigar o desenvolvimento desta escuta, suas trajetórias, seus espaços de formação, e, sobretudo, investir na escuta crítica da ?paisagem sonora?.(1) Escutar a ?paisagem sonora? significa escutar as sutilezas do mundo, suas mais variadas linguagens, seus silêncios, seus ruídos, suas sonoridades.
A partir das reflexões de Freire, venho compreendendo que a leitura e a escuta do mundo acontecem antes da leitura da palavra - em nosso caso, das palavras musicais, sendo importante investirmos na leitura da músicamundo(2), na qual a leitura não se limita à pura decodificação do código musical, mas ?se antecipa e se alonga na inteligência do mundo?, se transforma numa escuta que se arrisca em novos percursos, que se relaciona com percursos já conhecidos, que se desloca, que flui. Uma escuta que (re)cria o mundo. Uma escuta que compõe. Uma ?escuta nômade?.(3)
Foi justamente a partir de uma escuta criadora que o pequeno Abdijan travou seus primeiros diálogos com a música na escola. O menino dava vida às palavras escritas por Freire e me fazia entender, durante nossos encontros, que sua escuta do mundo encontrava-se relacionada à escuta das letras musicais que criava.
A partir do contato com as teclas pretas e da exploração dos sons graves e agudos do teclado, Abdijan descobria algo familiar. Certo dia, com sorriso estampado no rosto, contou-me ele que havia achado o som do Papa-Léguas. Mostrou-me que ao ?apertar? duas vezes as duas teclas pretas mais próximas no teclado(4), obtinha o som do ?Bip-bip? - som este característico do personagem preferido dos desenhos animados que assistia na televisão. Trata-se de uma ave veloz que briga constantemente com um coiote. O coiote azarado, entretanto, ao criar armadilhas para o papa-léguas, sofre com as mais dolorosas quedas de altas montanhas ou com a queda de pedras e objetos pesados sobre sua cabeça.
Ao propor que compusesse uma música, Abdijan não teve dúvidas: tomou o esperto Papa-léguas como tema principal e posteriormente criou sua própria partitura. Assim, sua música mostra o sobe e desce das montanhas (representado pelas linhas sinuosas), em que os dedos do pequeno precisam deslizar pelo teclado, escorregando sobre as teclas em forma de glissando que, ao chegarem no ponto mais agudo ou mais grave do teclado, emitem o som do papa-léguas - o bip-bip-  escrito na partitura com a própria imagem do animal.
Mais do que relatar o processo de criação da música Papa-léguas, penso que a partitura de Abdijan pode nos revelar alguns dos percursos de seus atos de escuta, dos ?lugares praticados? (5) de sua escuta atenta que, numa escola excludente, seriam simplesmente ignorados. Mais do que escrever sobre um acontecimento cotidiano de minha escola, penso que, ao trazer o papa-léguas, podemos entender a importância da valorização das diferentes formas de escutar o mundo, da valorização das experiências sonoras de nossos alunos, entendendo que eles não vão se ?alfabetizar? na escola, mas que vêm já se alfabetizando no universo sonoro em que estão mergulhados. Portanto, ao valorizar estes ?modos de fazer?(6), estamos investindo numa escola que potencializa, que não realiza uma ruptura com a ?leitura? do mundo(7), que olha o aluno como alguém que possui conhecimentos musicais, e que, portanto, já vem sendo musicalizado no mundo em que vive, como se ?estivessem  abertos diante dele todos os caminhos sonoros  do mundo?...

Notas:
1. SCHAFER, Murray. O ouvido pensante. São Paulo: Unesp, 1991.
2. Tomo de empréstimo a expressão de Paulo Freire ?palavramundo? (FREIRE, Paulo. A importância do ato de ler. São Paulo: Autores Associados: Cortez, 1988).
3. SANTOS, Fátima Carneiro dos. Música das ruas: o exercício de uma ?escuta nômade?. Revista eletrônica Opus, setembro, 2000.
4. Em linguagem musical, as teclas correspondentes ao dó sustenido e ao ré sustenido.
5. CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano. Petrópolis, Vozes, 1996.
6. CERTEAU, op. cit.
7. FREIRE, op. cit.

  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 125
Ano 12, Julho 2003

Autoria:

Christiane Reis Dias Villela Assano
Univ. Federal Fluminense, UFF - Integrante do Grupo de Pesquisa "Alfabetização dos Alunos das Classes Populares", Rio de Janeiro, Brasil
Christiane Reis Dias Villela Assano
Univ. Federal Fluminense, UFF - Integrante do Grupo de Pesquisa "Alfabetização dos Alunos das Classes Populares", Rio de Janeiro, Brasil

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