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Hitchock e "North by Northwest"

No nº 102 de Dezembro de 1959 dos ? Cahiers du Cinéma ? apareceu uma entrevista a Alfred Hitchcock- realizada por Jean Domarchi e Jean Douchet ? sobre a então estreia de ?North by Northwest?. Lembrei-me dela a propósito da cuidada reedição do filme em DVD. Esta edição contém, além do filme e o habitual ?trailler?, um documentário de bastidores, ?Destination Hitchcock?, apresentado por Eva Marie Saint com a participação de Martin Landau  e do argumentista Ernest Lehman e ainda a banda sonora musical de Bernard  Herman.
Aqui vão alguns dos excertos mais interessantes:
? ?Vertigo? e ?North By Nortwest? são filmes muito diferentes, que não foram realizados com o mesmo espírito. ?Vertigo?, é uma fábula psicológica, quase necrófila. O herói quer fazer amor com uma morta. Pelo contrário, ?North By Northwest? é um filme de aventuras tratado com uma certa ligeireza de espírito. ?Vertigo? é bastante mais importante para mim do que ?North By Northwest?, que é um divertimento muito engraçado (...) Não creio que me repita constantemente. Os pintores pintam sempre a mesma flor. Começam a pintá-la ainda sem nenhuma experiência e em seguida pintam-na aproveitando a experiência que adquiriram. Há uma grande diferença. Sim, o tema é o mesmo de ?The Wrong Man?: o homem inocente. Se me sirvo desse tema, é porque me  permite resolver uma parte importante do meu trabalho artístico e técnico. Creio firmemente na arte cinematográfica. Não creio nos diálogos. Faço ?suspense? e tento brincar com os espectadores ao gato e ao rato. Por isso , para que os espectadores sintam ansiedade, o ?suspense?, etc., temos de ter no écran um herói com o qual se possam identificar. Acho que é impossível querer fazer-lhes sentir os sentimentos de um ?gangster?. Porque eles não se reconhecem nele. Mas o homem da rua, o homem vulgar, esse compreendem-no. É como se fizessem parte integrante das aventuras contadas no filme (...) Não estava satisfeito com ?Saboteur?. Os heróis não eram interessantes. Os actores não eram bons. E depois, não é um verdadeiro filme. Há muitas coisas más, muitos  erros crassos ... na cena da Estátua da Liberdade, por exemplo...(...) o mau é que corre perigo, não o herói. Isso é importante para o espectador. Se está bem feito, ele sai satisfeito. Se não está, ele sente-o mesmo que não saiba porquê.(...) Escolhi a Estátua da Liberdade e o monte Rushmore apenas como cenários dramáticos. Para mim a arte está antes da democracia. No caso do monte Rushmore, tive que fazer um compromisso com as autoridades. Elas exigiram que não houvesse tiros, nenhuma cena de violência no monumento ou com o monumento em campo. Eu disse ?muito bem? e respeitei o acordo. Mostrei os heróis sobre os rochas ao lado do monumento. Podem verificar que não há nenhuma cena de violência sobre o monumento. Cumpri a minha promessa. Mas depois, decidiram suprimir do genérico a menção que lhes respeitava. Disseram-me ?mesmo que não tenha sido sobre o monumento, o público vai pensar isso?. Penso, todavia, que a razão do descontentamento das autoridades foi por numa cena do filme um dos guardas florestais agredir Cary Grant. Isso desagradou-lhes.(...) Há muito que me interesso pelo problema das perseguições no cinema. Nessa altura apercebi-me que o filme-perseguição é muito bom no plano do cinema, não só porque tem muito movimento, mas também porque permite muitas  mudanças de cenários naturais. Não sei concretamente porquê, mas  é assim; penso que um filme deve correr bem não só na preparação, na câmara ou na cabina do projeccionista, mas também em termos de história.
É  talvez  uma associação de ideias muito louca. De facto, quando tenho uma história de perseguição, a primeira coisa que me pergunto é: ? Para  onde vamos ?? ? (...) Em ?North by Northwest? os desenhos foram uma verdadeira arquitectura. Filmei primeiro os planos de Nova Iorque e estes inspiraram o genérico de Saul Bass. Ele fez os desenhos que estavam perfeitamente de acordo com as imagens. Quanto ao primeiro plano dos meus filmes, é muito importante para mim. A maior parte das vezes, serve para criar ambiente. Não sei se é sempre bom ter um plano muito importante no início de um filme. Porque muitas vezes no cinema as pessoas ainda conversam durante a primeira bobine. E é bom, se possível,  surpreender os espectadores. È preciso lutar, à nossa maneira, contra os cochichos e as pessoas que demoram cinco minutos a sentar-se. É por isso que depois do genérico, ponho às vezes planos muito dramáticos. Fiz isso em ?Vertigo?, por exemplo. Mas reparem que muitos filmes bons têm genéricos muito fracos. Muitas vezes, quando o filme acaba, o público já esqueceu completamente como o filme começou.?
Como curiosidade ... no final da referida entrevista Hitchcock condescendeu em falar sobre o seu filme seguinte... ?Psycho?:
? É um filme de terror... O mau é sempre muito mais interessante. É assim na vida. É a realidade , é a lógica.
?Psycho? não será uma super-produção, mas será sem dúvida um filme muito estranho. Vou rodá-lo em Hollywood. Vou mandar construir uma casa e um motel nos estúdios da Universal. Será mais fácil filmá-lo assim.
Será um filme de charme e sangue. Vai haver muito, muito sangue. Saul Bass vai ajudar-me em algumas iluminações.(...)
O director de fotografia não será Jack Russel, que quando o fui buscar à Warner não passava de um honesto director de fotografia, a quem obriguei a mudar de estilo de trabalho e a ser muito mais cuidadoso. Agora tem uma reputação a defender e é demasiado lento.
Preferi um director de fotografia da televisão e especialista em preto e branco. Na televisão sabem trabalhar rapidamente. E eu quero rodar rapidamente: não quero fazer um filme caro porque, francamente, não sei se terá algum sucesso. É muito, mesmo muito, fora do comum.?
Apesar de todo o seu talento, o velho ?Hitch? não era realmente um grande oráculo.

P.S. I. Teerão- Nos primeiros dias de Março, cinco intelectuais iranianos- quatro críticos de cinema- foram presos pela polícia e as suas casas revistadas com vista a serem-lhes apreendidas as suas colecções de filmes estrangeiros. Em casa de um dos críticos foi descoberto um vídeo que ele próprio tinha rodado e no qual se podia ver mulheres dançando sem véu, o que é ?naturalmente? grave. Quanto ao escândalo que constitui a descoberta em casa dos críticos de cópias de filmes estrangeiros em vídeo, deve ser relativizado: os críticos iranianos escondem-se bem menos que os filmes proibidos, pois fazem regularmente críticas deles na imprensa do seu país.
P.S. II. Itália- Silvio Berlusconi continua o seu trabalho de sapa contra a esquerda intelectual no domínio da cultura. O cinema Sacher, gerido por Nanni Moretti no bairro Traslavere está sob ameaça de encerramento. Desde 1991 que organiza aí festivais, ciclos, programações alternativas e projecções-debate. A proprietária do cinema, uma agência do Estado, acusa Moretti de não pagar a renda regularmente, o que o realizador e o seu sócio e produtor, Angelo Barbagallo, negam firmemente. Mas, e é aqui  que bate o ponto, o deputado da Forza Itália- partido de Berlusconi- Francesco Stradella acusa Moretti de ter utilizado indevidamente o Sacher para reuniões de carácter político- fazendo alusão à manifestação de 14 de Setembro na qual Moretti participou e onde interveio em público.  Manifestação essa contra a lei Cirami, que visa evitar que Berlusconi seja condenado nos tribunais italianos.
A vice-ministra da economia, Maria Teresa Armosino, já interpôs as ?demarches? legais para recuperar o cinema, apesar dos protestos da Associação dos Autores de Cinema.


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 124
Ano 12, Junho 2003

Autoria:

Paulo Teixeira de Sousa
Escola Secundária Especializada de Ensino Artístico de Soares dos Reis, Porto
Paulo Teixeira de Sousa
Escola Secundária Especializada de Ensino Artístico de Soares dos Reis, Porto

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