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Este documento faz um corte total com o passado, a começar pela filosofia de base do sub-sistema

Entrevista com Fernanda Ramos, Presidente da ANESPO

SEM QUERER SER ALARMISTA, DEVO DIZER QUE O CONHECIMENTO PROFUNDO QUE TENHO DA REALIDADE ME FAZ SENTIR CÉPTICA E RECEAR QUE O «DOCUMENTO ORIENTADOR» EM VEZ DE DAR RESPOSTA AOS DESAFÍOS DO ENSINO PROFISSIONAL, SEJA ELE PRÓPRIO O PRINCIPAL DESAFIO À SOBREVIVÊNCIA DO SUB-SISTEMA.

Um dossier sobre o ensino profissional não poderia ficar completo sem que uma sua importante associação representativa, como é a Associação Nacional de Escolas Profissionais (ANESPO), tivesse uma palavra a dizer. Foi para conhecer os pontos de vista desta importante associação que a PÁGINA entrevistou Fernanda Ramos, sua presidente e directora de uma escola profissional. Fernanda Ramos critica a orientação do Governo e põe a nu as debilidades vividas neste sub-sector, autêntico «parente pobre» do ensino secundário.
 
Que apreciação faz do recém apresentado documento orientador da Revisão Curricular do Ensino Profissional? Parece-lhe um documento de ?boas intenções? ou está estruturado de forma a poder dar resposta aos desafios que se colocam ao ensino profissional em Portugal?

Considero positivo o lançamento do ?Documento Orientador da Revisão Curricular do Ensino Profissional? como instrumento de discussão e, nesse sentido, não o encaro como um produto acabado, perfeito e inquestionável. Admito que o Sr. Ministro da Educação acredite nas ?boas intenções? da estratégia que propõe, mas esta não é, claramente, a estratégia que a Associação Nacional de Escolas Profissionais (ANESPO) defende para o Ensino Profissional.
Depois deste apresentar os resultados que apresenta - apesar das vicissitudes por que passou ao longo dos anos -, depois da nossa Associação ter feito várias propostas e depois de termos promovido um estudo aprofundado sobre o sub-sistema (que foi acompanhado pelo Sr. Ministro da Educação), esperávamos que o ?Documento Orientador? contribuísse para melhorar o que estava mal ou menos bem e que apresentasse soluções para os problemas antigos. Ora, o que acontece é que este documento faz um corte total com o passado, a começar pela filosofia de base do sub-sistema.
Pela natureza maioritária das suas associadas ? entidades privadas sem interesses lucrativos, geradas pela sociedade civil - a ANESPO sempre considerou o Ensino Profissional como um sub-sistema de interesse público e, como tal, as escolas profissionais foram criadas para cumprirem uma missão útil à sociedade. Dizem-nos agora que, afinal, as escolas profissionais devem ser uma espécie de empresas de formação, orientadas segundo lógicas comerciais e sujeitas às regras do mercado, embora isso não tenha sustentação na realidade social, económica, educacional e formativa do país.
Esta mudança é radical e traz consigo alterações profundas, cujos impactos parecem não ter sido avaliados adequadamente e estão a gerar perplexidade, como, aliás, tem sido expresso por diversas individualidades e entidades.

A que se refere exactamente?

Refiro-me, por exemplo, às consequências decorrentes da redução das cargas horárias dos cursos, à aproximação dos currículos dos cursos profissionais aos dos cursos gerais e tecnológicos, ao sistema de candidaturas proposto e à continuidade dos «numerus clausus», ao estabelecimento do mérito ? cujo conceito está por definir - como critério único para a atribuição das bolsas de frequência e das bolsas sociais, e à omissão de soluções para os compromissos que as escolas assumiram anteriormente e que não poderão manter. Portanto, respondendo directamente à sua pergunta, mesmo sem querer ser alarmista, devo dizer-lhe que o conhecimento profundo que tenho da realidade me faz sentir céptica e recear que o ?Documento Orientador? em vez de dar resposta aos desafios do ensino profissional, seja ele próprio o principal desafio à sobrevivência do sub-sistema... por as respostas não serem as mais adequadas.

Um recente estudo da Federação Nacional de Professores (Fenprof) realizado junto de 57 escolas profissionais revelou que mais de metade destas encerrará as suas portas quando, em 2006, acabarem as verbas do III Quadro Comunitário de Apoio. A situação é tão pessimista quanto transparece neste estudo?

A ANESPO tem tido sempre uma postura responsável, dialogante e construtiva. Por isso, não serei eu ? enquanto Presidente da Direcção - a dramatizar a questão artificialmente. Porém, não posso ignorar a realidade e os cenários que se nos apresentam. As escolas profissionais não constituem uma rede homogénea em termos de dimensão, de condições de trabalho, de organização e de necessidades financeiras. A origem, a antiguidade, a localização geográfica e o respaldo institucional de cada uma, teve e tem muita influência na sua consolidação. Portanto, é natural que umas tenham mais dificuldades do que outras. Neste momento, o risco de encerramento é eminente para as mais débeis, mas é preocupante que já seja para outras com provas dadas. Neste contexto, o problema é hoje; 2006, virá depois.
Basicamente, a questão tem que ser vista sob este prisma: se ninguém questiona o financiamento dos outros sub-sistemas através do Orçamento Geral do Estado, também não pode ser questionado o financiamento do Ensino Profissional através da mesma fonte. Quando muito, o que se poderá questionar é a disparidade de financiamentos sem se avaliar a relação custo/benefício em todos os sub-sistemas. Por isso, acredito que a preparação do pós-2006, sendo um problema do Ensino Profissional devido à situação que lhe foi criada, é, sobretudo um problema do país. É o interesse nacional que está em causa e não me parece que esta dimensão esteja a ser devidamente equacionada.

Para fazer face à previsível supressão dos fundos comunitários o governo propõe um novo modelo de financiamento assente na capacidade de atracção dos alunos e nos índices de inserção profissional proporcionados pelas escolas. Qual a sua opinião face a esta proposta?

O que lhe disse atrás em parte já responde a isso. Mas deixe-me acrescentar o seguinte: é aceitável que haja um modelo de financiamento baseado na capacidade de atracção e na empregabilidade dos alunos, desde que extensivo aos vários sub-sistemas e a todos os estabelecimentos de ensino. Mas só se fala disso em relação ao Ensino Profissional, ao qual são feitas exigências que não se fazem a mais nenhum, sendo colocado numa situação de concorrência desigual com os outros.
Curiosamente, isto acontece com o único sub-sistema que, ao nível do secundário, os candidatos não podem frequentar livremente devido aos «numerus clausus». É curioso que isso também aconteça no sub-sistema que, até prova em contrário, é o mais barato e o que tem melhores resultados. Parece-me que seria razoável que aquelas variáveis - e outras, como a qualidade de ensino demonstrada, o rendimento escolar dos jovens, as taxas de abandono precoce, etc.-, fossem tidas em conta no financiamento de todos os sub-sistemas de ensino, segundo regras e critérios comuns. Num quadro comparativo, sustentado na equivalência de condições (que evidentemente não existe), o país tinha muito a ganhar com isso. Mas, como as coisas estão, as exigências só se colocam ao Ensino Profissional, o que deixa a pensar qualquer cidadão contribuinte que esteja atento ao que se passa.

Referiu durante o III Congresso do Ensino Profissional, ser necessário ?promover uma permanente avaliação dos planos curriculares e perfis de formação?. Uma das principais acusações dirigidas ao ensino profissional é precisamente o facto de os cursos terem ainda uma componente teórica que não se compadece com os seus objectivos de base. Considera esta crítica válida?

Bom, se essa crítica existe, então com esta Revisão Curricular imagino o que será... O que diferenciava os cursos do Ensino Profissional dos de outros tipos de ensino, nomeadamente do Tecnológico, era a carga horária técnica e tecnológica, incluindo a formação em contexto real de trabalho. Os nossos alunos tinham muito mais horas de formação do que os outros; logo, ficavam melhor preparados para começar a trabalhar e as empresas davam-lhes preferência. Era a nossa vantagem comparativa mais importante e a que mais interessava aos empregadores. Esta Revisão Curricular acaba com ela, ao diminuir drasticamente as cargas horárias! Há quem diga que isso é para  compensar a redução dos financiamentos. Não sei se é, mas os jovens passarão a ter muito menos horas de formação científica, técnica e tecnológica. Obviamente, isso terá repercussões negativas nas suas competências à entrada para o mercado de trabalho. Isso é que me parece criticável e merecedor de reflexão.

A responsabilidade pela colocação dos alunos no mercado de trabalho deverá pertencer exclusivamente às escolas profissionais? Nesse contexto, as empresas têm-se adaptado às qualificações produzidas pelo subsistema?

As escolas profissionais devem conhecer a realidade económica, devem adaptar a sua oferta formativa às necessidades das empresas, devem formar bons técnicos e devem ajudar os jovens a aceder aos empregos. E devem ainda promover a sua formação ao longo da vida. Mas a colocação não é, nem pode ser, da exclusiva responsabilidade das escolas, como é evidente! Essa função deve ser partilhada por todas as entidades e serviços que interagem com o mercado de trabalho, não só os serviços públicos, mas também as estruturas empresariais e sindicais.
Nesse sentido, a concertação deverá ser mais intensa, tanto ao nível dos diagnósticos de necessidades, como da definição dos conteúdos e modelos de formação, como ainda da futura inserção dos diplomados. Em alguns destes aspectos, as escolas profissionais têm conseguido trabalhar com as autarquias, as empresas, os sindicatos, o Instituto do Emprego e Formação Profissional e com outros agentes locais, o que tem contribuído para adequar as ofertas formativas às procuras e para elevar a taxa de empregabilidade entre os diplomados. Considero que as empresas são parceiros fundamentais, pois, independentemente das dificuldades estruturais e de contexto que sofrem, têm estado disponíveis para colaborar com as escolas profissionais, discutindo os problemas, apresentando sugestões, acolhendo os nossos estagiários, criando condições para o seu aproveitamento e dando preferência aos nossos diplomados nas contratações de pessoal. Além disso, não podemos esquecer que pagam impostos que, em parte, financiam o sub-sistema.

A nova matriz curricular permitirá, de acordo com o Ministro da Educação, uma maior permeabilidade entre cursos do ensino secundário. Será esta a clarificação da articulação entre os sub-sistemas do ensino secundário numa lógica de complementaridade que defendeu também naquele encontro?

Vamos ver se permitirá uma maior permeabilidade e que consequências isso terá para os jovens. Há aspectos práticos que não me parecem salvaguardados quando ocorrerem transferências entre sub-sistemas, sobretudo quanto às equivalências (apesar dos cursos serem cada vez mais iguais uns aos outros). Isto não é complementaridade e não era a isso que me referia. Entendo que os vários sub-sistemas devem ter objectivos e públicos-alvo distintos e, como tal, devem ter conteúdos diferenciadores, suficientemente claros e eficazes. Isso é que gera complementaridade entre os vários sub-sistemas dentro do ensino secundário. A mobilidade entre os sub-sistemas deverá existir ? com as contingências inerentes à mudança de uma primeira escolha para uma segunda ou terceira escolha -, mas esta incidência poderá ser muito reduzida logo à partida, se forem instituídos bons serviços de informação e orientação vocacional. A opção dos jovens por este ou aquele sub-sistema ou curso não pode estar sujeita a acasos, apreciações superficiais e informações vagas, deve ser consciente e bem fundamentada. Para bem dos jovens, do país e do erário público.


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 124
Ano 12, Junho 2003

Autoria:

Ricardo Jorge Costa
Jornalista do Jornal A Página da Educação
Fernanda Ramos
Presidente da ANESPO
Ricardo Jorge Costa
Jornalista do Jornal A Página da Educação
Fernanda Ramos
Presidente da ANESPO

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