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O doce amargo da violência

"(...) o que passa lá para fora é a deplorável imagem de um país a construir estádios de futebol a menos de dois quilómetros um do outro (Benfica e Sporting), enquanto que muitos milhares de portugueses vivem miseravelmente em barracas. Se isto não é violência?então o que é?"

A violência no mundo do desporto é, geralmente, desculpada com a endémica carência de ?cultura desportiva? do povo português. A partir desta constatação de profundo significado existencial, todos ficam de consciência tranquila. No entanto, bem vistas as coisas, tem sido precisamente o próprio sistema, o grande promotor da cultura de violência que, tal como uma praga, se espalha a uma velocidade vertiginosa pelo país. Em consequência, Portugal vai atingir em 2004 um dos pontos mais altos da história do seu desporto, com muitos milhões de euros investidos em estádios, pistas e piscinas, que vão ficar vazios, por falta de praticantes, por inviabilidade financeira ou por incapacidade das federações. Tudo isto, porque ao longo dos últimos anos, os poderes vigentes, à imagem e semelhança do que se passava nos regimes de Leste antes da queda do Muro, privilegiaram uma política desportiva direccionada para o rendimento, medida, recorde, espectáculo, profissionalismo precoce, economia subterrânea e  consumidores acéfalos de espectáculos desportivos, em prejuízo da promoção da prática desportiva, num país em que as taxas de participação desportiva são absolutamente vergonhosas.
Temos de chegar à conclusão que, se por um lado, a política desportiva tem sido sustentada no poder de divertir a multidão, por outro, a violência social já faz parte dos seus condimentos, no sentido de alienar as massas. Em conformidade, a cultura de violência não é do povo, porque decorre da profunda ignorância em matéria de política desportiva, de muitos daqueles que nos sectores público e privado têm, desgraçadamente, governado o país. Estamo-nos a referir a uma política desportiva permissiva em relação  à irresponsabilidade dos dirigentes desportivos públicos ou privados, com perspectivas enviesadas de compreender o fenómeno desportivo, hipócrita e egoísta na análise das situações, geradora de incoerências e de assimetrias sociais e promotora de condutas que só servem para alimentar os escândalos dos telejornais das vinte horas. Entretanto, enquanto a generalidade da população jovem sofre à míngua de uma educação desportiva, alguns dos dirigentes do movimento associativo, para além de sonharem com a candidatura à  realização de Jogos Olímpicos, banqueteiam-se com Master?s de Lisboa, Campeonatos do Mundo de Pista Coberta e Euros 2004 que, bem vistas as coisas, não serviram nem vão servir para coisa nenhuma, a não ser para os portugueses pagarem a factura. Em resultado, o que passa lá para fora é a deplorável imagem de um país a construir estádios de futebol a menos de dois quilómetros um do outro (Benfica e Sporting), enquanto que muitos milhares de portugueses vivem miseravelmente em barracas. Se isto não é violência?então o que é?
A procura da excitação agradável, do hedonismo, é uma necessidade básica da condição humana. Seria bom que os políticos entendessem que ou aquela necessidade  é orientada a partir da escola de uma forma positiva e socialmente útil, ou a sociedade, mais cedo ou mais tarde, terá de pagar com elevados juros, essa incapacidade de não ser capaz de resolver os problemas enquanto eles ainda estão longe. Quando uma sociedade não proporciona aos seus membros, sobretudo às gerações mais jovens, oportunidades para gerirem o próprio equilíbrio emocional através de projectos em que buscam uma excitação agradável, podemos estar certos que eles, para compensarem as agruras de uma sociedade violenta porque injusta, vão procurar essa excitação por conta própria, com consequências imprevisíveis.
O problema não é fácil de resolver. Por um lado, vivemos numa sociedade que privilegia, fundamentalmente, aqueles que rendem, pelo que o desporto, até pela componente agonística que comporta dentro de si, é um espaço singular para que sentimentos de agressividade e violência de toda a espécie, sejam potencializados à máxima expressão. Por outro lado, é na violência que o ímpeto vital se manifesta e se torna visível. Segundo Thomas More (1996) se esta vitalidade fundamental não está presente no coração, parece, pelo menos, manifestar-se de forma distorcida, nas nossas repressões e compromissos, nos medos e nas manipulações narcisistas de que somos vítimas. ? Eliminar a violência com campanhas de ?fair play? e outros artifícios para o basbaque ver? ? É incorrecto abordar a violência movidos pela ideia singela de a eliminar. ?Qualquer tentativa de erradicar a violência que existe em nós poderá fazer com que nos desliguemos do poder profundo que sustenta a vida criadora.?
Temos um desporto violento porque somos intrinsecamente violentos e o desporto é um espaço privilegiado de expressão dessa violência da qual adquirimos prazer e damos vazão aos ?nossos demónios?. O problema é que não temos sabido gerir a violência que há dentro de nós e dentro da sociedade de que fazemos parte. Uma violência capaz de nos levar aos maiores feitos, mas, também, uma violência capaz de gerar terror e morte. Uma violência capaz de gerar apoios e solidariedades, mas, também, uma violência capaz de gerar as maiores injustiças e hipocrisias. E é isto que está a acontecer. Desde logo, a partir da escola onde quase trinta anos de democracia não foram suficientes para engendrar um sistema de ensino do desporto com objectivos, estratégia e organização credíveis ao serviço dos interesses e das necessidades dos jovens e do próprio país.


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 119
Ano 12, Janeiro 2003

Autoria:

Gustavo Pires
Professor na Univ. Técnica de Lisboa
Gustavo Pires
Professor na Univ. Técnica de Lisboa

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