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Carta às mulheres portuguesas de uma mulher brasileira

Caras companheiras portuguesas

Um pedido de José Paulo Serralheiro sempre me instiga, pois a sua capacidade de criar e de convidar a novas aventuras é inimaginável. Eis que seu último desafio é que participemos aqui do Brasil, umas três ou quatro mulheres, de uma conversa sobre a nossa condição de mulheres, nós cá e vós lá.

Fazer um texto/carta para um jornal feito por professores e professoras para professores e professoras, que não sendo eu machista, não descarto os homens desta nossa conversa feminina.
Fosse em outro momento, eu talvez escrevesse sobre a sociedade brasileira em que nasci e vivo ? 0 Brasil -  onde, desde sempre, impera o machismo. Sociedade onde, por tanto tempo, um homem matava uma mulher e se defendia sob o pretexto de estar limpando a sua honra. Levado a julgamento, seria absolvido, pois era considerado justo que um homem ?desonrado? se sentisse no direito de dispor da vida de sua mulher. Talvez escrevesse sobre o que aconteceu no último carnaval, quando uma bela mulher, profissional de usar seu corpo como objeto de desejo de todos os homens, o que a obriga a operações plásticas, enxertos de silicone, musculação e que tais, apresenta-se no desfile de uma escola de samba, como sempre quase nua, portando uma coleira no pescoço onde se afirmava propriedade de seu marido rico, seu amo e senhor. Talvez lhes expusesse a situação da mulher no mundo do trabalho, em que as pesquisas nos mostram que, em geral, uma mulher, desempenhando igual função que um homem e apresentando as mesmas qualidades de formação e desempenho que o homem, recebe um salário muito menor. Talvez ainda, compartilhasse com vocês a situação de um número crescente de mulheres que sustentam a família, tendo de dar conta de dois ou até mesmo três empregos para conseguir juntar uns minguados tostões e sustentar a família e, à noite, quando retornam cansadas à casa, ainda terem de dar conta de administrar a sua casa, dar atenção aos filhos, e, tantas vezes, limpar a casa, fazer a comida, lavar a roupa, para só então, poderem tomar um banho e deitarem-se para dormir, já sabendo o que as espera no dia seguinte.
Mas hoje não é de nossas mazelas que falarei. Hoje é um dia de grande alegria e orgulho para as mulheres brasileiras. Acabam de sair os resultados do primeiro turno das recentes eleições acontecidas no Brasil. E eis que, de repente, não mais que de repente, somos todos e todas impactados com a alvissareira notícia de que o número de mulheres eleitas já no primeiro turno é surpreendentemente alto. Foram eleitas 10 senadoras e 42 deputadas federais. A bancada feminina cresceu de quatro para dez senadoras, e de trinta e duas para quarenta e duas mulheres na Câmara dos Deputados. Até nos estados da região norte, conhecida como machista, foram mulheres as mais voltadas. E mais, todas de esquerda, à exceção da eleita pelo estado de Tocantins. Mulheres progressistas chegaram na frente em Roraima, Acre,  Amapá, Amazonas. Talvez vocês se lembrem de um Postal que enviei de Aracaju em Sergipe, no nordeste do Brasil, há alguns meses, em que lhes falava de minha querida amiga professora militante do fortíssimo Sindicato de Trabalhadores da Educação de Sergipe, a Aninha, como carinhosamente a  chamamos. Pois esta mulher de fibra e luta, foi eleita a deputada estadual mais votada no estado de Sergipe. A bancada mais feminina do país será a do Rio Grande do Sul onde, para orgulho nosso, temos inúmeras prefeituras petistas e onde se realizará um segundo turno acirrado no próximo dia 27 de outubro( possivelmente quando sair esta minha carta na Página da Educação já teremos o resultado desta luta que, espero, tenhamos vencido). Mas o maior destaque vem para o estado do Rio de Janeiro, campeão de eleição de mulheres, tendo sido eleita a governadora, além de terem sido duas mulheres as candidatas que obtiveram a maior votação ? uma juíza corajosa que condenou toda a quadrilha do jogo do bicho, filiada ao partido da situação, e uma médica ferrenha comunista, reeleita por sua importante atuação na defesa da saúde da população.
As oligarquias estaduais perderam muito de sua força desta vez. E este será o congresso mais feminino da história do Brasil.
É interessante ressaltar que os quatro candidatos mais fortes nesta eleição, deram grande importância às  mulheres ?  um escolheu uma mulher para vice em sua chapa, outro  valeu-se de sua mulher bela e simpática atriz para conquistar votos, outro ainda teve a sua mulher eleita governadora do importante estado do Rio de Janeiro e outro apresentava-se pela primeira vez com a sua mulher a tiracolo. Todos haviam descoberto que as mulheres representam 50% do eleitorado brasileiro.
O que lhes conto não é para dizer que o Brasil mudou e que agora temos uma democracia de gênero. Não. Muito ainda há a fazer. É uma batalha diária, em todos os espaços da sociedade. E nós, na escola, muito temos a fazer, pois apesar desta importante vitória nas eleições, a sociedade ainda é fortemente marcada pelo machismo ibérico. A nossa responsabilidade na formação de novas gerações nos chama a contribuir para que a sociedade brasileira se torne mais democrática, mais igualitária, mais justa, mais solidária, mais amorosa, mais comprometida com a vida.

Com o meu carinho sororal
Regina Leite Garcia


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 117
Ano 11, Novembro 2002

Autoria:

Regina Leite Garcia
Univ. Federal Fluminense, Rio de Janeiro, Brasil
Regina Leite Garcia
Univ. Federal Fluminense, Rio de Janeiro, Brasil

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