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Entrevista ao escritor e crítico Fernando Venâncio

É natural de Mértola. Fez a primária em Lisboa e frequentou o seminário em Braga. É licenciado em Linguística Geral (Universidade de Amsterdão, 1976) e doutorado, em 1995, com a tese Estilo e Preconceito: a língua literária em Portugal na época de Castilho, 1835-1875 (edição da Cosmos, 1998). Vive na Holanda desde 1970. Trabalhou nos departamentos de estudos portugueses da universidade de Nimega (1978), de Utreque (1984) e de Amsterdão (desde 1988). Publicou, ou publica, crítica literária no Expresso, Ler, Cadernos de Literatura, Colóquio-Letras e JL.
É autor de dois romances, Os Esquemas de Fradique, de 1999, e El-Rei no Porto, de 2001, assim como de um livro de contos, Um Selvagem ao Piano, de 1987. Tem, também, diversas traduções e vários manuais de Português para holandeses. Algumas das suas crónicas literárias foram reunidas no volume Maquinações e Bons Sentimentos, a sair brevemente, na editora Campo das Letras.
Esteve no centro de uma polémica, no Verão de 2001, com Eduardo Prado Coelho e Eduardo Pitta, entre outros, onde se esgrimiram argumentos sobre ensaísmo e crítica literária e se trocaram mimos pouco usuais na pacata intelligentsia portuguesa.


Está há mais de 30 anos na Holanda. Foi uma fuga sem retorno.
Diz bem, foi uma fuga. Tive de fugir da tropa, e a deserção não é propriamente um passeio. Ia ser destacado para a Guiné, como oficial, e isso tinha, em 1970, alguns aspectos de suicídio.

Entretanto, foi-se encantando pelo estilo de vida holandês.
Eu não sei se me encantei, ou se simplesmente ele é o consentâneo com o meu modo de ser. Facto é que sempre fui assim: certinho, sério, esperando poder contar com as pessoas e as pessoas comigo. Na Holanda, isso é habitual.

Mas o afastamento de Portugal não é muito acentuado. Vem cá diversas vezes e aqui faz uma parte das suas investigações.
De acordo, mas esse é um cenário recente. Quando saí, em 1970, foi para ficar. Na nossa perspectiva de então, a ditadura ia durar o resto das nossas vidas. Os nossos contactos em Portugal falavam-nos de um país que íamos deixando de conhecer. Em 1973 chegou a notícia de que havia, em Lisboa, um jornal moderno e ousado, era o "Expresso". Eu vi-o pela primeira vez nos finais de 74, quando já se publicava há mais de dois anos. Hoje, às 7h30 da manhã, entro no meu gabinete da universidade, ligo o computador e leio o "Público" e o "Diário de Notícias", e ao sábado de manhã o "Expresso". E tenho sempre mensagens de amigos e conhecidos. Estou a anos-luz do isolamento de antigamente.

Ouvi-o num Encontro, em Cascais, fazer um comentário sobre as "limitações", não sei se o termo foi esse, da escrita de Saramago, um autor que analisou no livro José Saramago: a luz e o sombreado, publicado em 2000.
Os problemas não vêm exactamente da escrita, que é uma das mais aliciantes que já houve em língua portuguesa. São os temas, às vezes bons, que não conseguem despertar interesse suficiente. E, isso, porque Saramago descuida dois momentos importantes de um livro: o início e o fim. Fica-se com a impressão de, a certa altura, ele abandonar o livro, por vezes muito cedo ainda. É claramente o caso do último romance, A Caverna, que a um terço do livro já ficou abandonado. De todos, o único início bem conseguido, e esse retumbante, é o de Memorial do Convento, página e meia de puro ouro. Portanto, trata-se, como vê, de uma irregularidade do trabalho. Mas há outro problema: o maneirismo. Em geral, consegue efeitos óptimos. As coisas estragam-se quando Saramago se mostra demasiado consciente desses efeitos, e começa a fazer maneirismos sobre maneirismos. É, decerto, engraçado ver em livros dele referências subtis a obras anteriores, mas quando a chamada de atenção para a escrita começa a ser sistemática geram-se alguns anticorpos. Enfim, José Saramago é um autor que suscita polémica, e conheço bastante gente a criticá-lo amargamente. Mas muito poucos, na realidade só o Pedro Mexia e eu próprio, é que o pomos no papel.

O seu segundo romance, El-Rei no Porto, levanta a eterna questão das relações entre ficção e realidade. É, decerto, uma obra ficcional. Mas não parece assim tão descabido imaginar, em Portugal, dois regimes: uma Monarquia a Norte, uma República a Sul.
Era perfeitamente realizável essa divisão de Portugal em dois, até politicamente. Não digo que fosse desejável. Mas, ao dar-se-lhe forma num romance, cria-se essa realidade no espírito do leitor. A de um Portugal dividido em dois. Depois disso, para esse leitor, nunca mais Portugal será igual, há uma definitiva perda de inocência. Mas não passa, claro, de um jogo mental, que espero divirta a malta.

E, todavia, para a generalidade dos portugueses, o país é visto como Norte e Sul.
Bom, isso organiza-nos a mente. A mente humana precisa de simplificações, para uma percepção do mundo. A divisão de Portugal, não a inventei eu. O que fiz foi cristalizá-la a nível político. E isso funciona. O Portugal do Norte, a monarquia, sofre um recuo nas instituições políticas, mas revela-se economicamente superior, o que é perfeitamente pensável. Por sua vez, o Sul, fazendo da necessidade virtude, põe em prática um plano, que já podia ser o deste momento, que é criar um forte pólo urbano no Algarve e repovoar o Alentejo. Eu imaginei, mesmo, secções online de alguns ministérios, em Évora e Beja. Se quiséssemos reorganizar o Sul, ideias não faltavam.

Simplesmente, a nossa pequenez não justificaria dois países. Ainda assim, a sua ideia quadra bem numa pulverização nacionalista que poderia ser a da Europa do futuro.
Houve uma oportunidade de comandarmos o destino, que foi a regionalização. Não se aproveitou. Vamos continuar com o país como está, com uma Lisboa macrocéfala, com um Norte a querer ganhar um perfil próprio, mas sem meios políticos para o fazer. Repare que há países ainda mais pequenos, e perfeitamente viáveis. A Holanda cabe, toda ela, nos nossos dois Alentejos.

Agora, outro assunto. Uma parte da sua actividade é, de há muito, a crítica literária. E só recentemente se revelou ficcionista. O crítico é um escritor frustrado ou um escritor que escreve tardiamente? Um crítico nunca publicará ficção muito cedo, já que os seus critérios de qualidade são elevados?
Isso podia ser o cenário adequado. Quando há toda uma exigência que trava a publicação de um romance, isso é bom! Quem dera que houvesse mais travões desses. Mas o maior problema são os críticos sem vocação nenhuma para a ficção. Não fazem a mínima ideia do que é idear uma história, encontrar-lhe um ritmo e uma linguagem. Falam, portanto, sobre algo que definitivamente lhes escapa. Daí, por compensação, a tendência para idolatrarem o "texto". Daí a pacóvia convicção, meio estruturalista, de que o texto seja uma arquitectura, e de que tirando-se-lhe uma peçazinha ele se desmorona. Ora, um ficcionista sabe que um telefonema, ou uma ida à casa de banho, ou o fechar de uma janela por causa do sol ou da ventania, podem influenciar todo o resto de um conto, de um romance. Não há nada de sacral num texto.

Um artigo seu, publicado no Diário de Notícias, tinha por título "As mãos sujas do crítico literário". Acha que um crítico tem sempre de tomar posição?
O crítico tem de dizer frontalmente ao público e ao autor aquilo que achou de um livro. O que implica que, vez por outra, diga "Desculpe, mas isto não me convence". A isso chamei eu sujar as mãos. Sou, há-de compreender, contra uma crítica de punhos de renda, de salão, que só fala daquilo de que gostou, e que é tremendamente cobarde. Por mim, aceito fazer o trabalho sujo. Simplesmente, como somos poucos a fazê-lo, depois pagamo-lo de algum modo. Ou procuram recuperar-nos, o que é a suprema vilania, ou nos diminuem em outros terrenos. Eu pago isso como romancista. Mas não me queixo. São estas as coisas que dão colorido à vida.

Não acha que, hoje, os críticos escolhem obras e autores muito em função de afinidades que têm com eles, designadamente no campo afectivo, mais do que no ideológico?
Seria interessante fazer um organigrama da crítica portuguesa. Quem escreve sobre quem e quantas vezes. Suponho que era absolutamente revelador. Mas suponho, também, que muita gente já tem esse organigrama na cabeça.

Que critério usa na escolha de um livro a criticar?
Este critério simples: o interesse em falar dele, seja para dizer bem, seja para dizer mal. Ou, mais bonito ainda, para conjugar as duas coisas. E a grande maioria dos livros presta-se exactamente a esta conjugação. O que é pavoroso é verificar que pouquíssimos críticos são capazes de o fazer. Porquê, não sei. Em parte talvez por indolência, em parte por comodismo. Ou por uma falta desse mínimo de perversidade que tanto bem faz às relações humanas. Mas quem faz crítica e não é capaz de fazer uma boa crítica negativa, com pés e cabeça, é uma pessoa profundamente inculta.

Algum escritor lhe pediu alguma vez, directamente, uma crítica?
Já. Os casos verdadeiramente dramáticos são aqueles em que um autor nos diz: "Fale do meu livro, nem que seja para dizer mal". São autênticos gritos de angústia. Mas, em si, é óptimo que um autor nos sugira a leitura de uma obra sua. É, às vezes, uma bela oportunidade de encontrar bons livros.


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 110
Ano 11, Março 2002

Autoria:

Fernando Venâncio
Escritor
Luís Souta
Instituto Politécnico de Setúbal
Fernando Venâncio
Escritor
Luís Souta
Instituto Politécnico de Setúbal

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