Ninguém chega a tornar-se humano se está só: tornamo-nos humanos uns aos outros.
A nossa humanidade foi-nos "contagiada": é uma doença mortal que nunca teríamos
desenvolvido se não fosse a proximidade dos nossos semelhantes! Passaram-no-la
de boca em boca, pela palavra , mas antes ainda pelo olhar: quando ainda estávamos
muito longe de saber ler, já tinhamos lido a nossa humanidade nos olhos dos
nossos pais ou de quem, em seu lugar, nos deu atenção.
(Fernado Savater, 2000).
De uma incompletude originária emerge a necessidade de encontro, de aprendizagem
e de contágio que sublinha a universalidade da condição humana. Daí o sem sentido
do (pre)conceito de "raça" quando aplicado aos agrupamentos humanos, conforme
evidencia a Declaração de Florença, segundo a qual os factos que jogaram um
papel preponderante na evolução do homem foram, precisamente, a sua faculdade
de aprender e a sua plasticidade. E, como é referido nesse texto produzido pela
UNESCO em 1950, esta dupla aptidão é apanágio de todos os seres humanos.
Assente numa prática de relação interpessoal marcada por uma intecionalidade
pedagógica, a educação desempenha um papel fundamental no processo de "contágio"
de humanidade e, nesse processo privilegiado de contágio a que chamamos educação,
o educador ocupa, naturalmente, um lugar de eleição. Sem ignorar, ou menosprezar,
outras possibilidades de relação e de comunicação, julgo que nada poderá substituir
a presença humana, física, do educador. Nem mesmo os mais avançados produtos
da tecnologia, por muitos úteis e necessários que sejam, poderão sobrepor-se
à lição que nos é dada pelo gesto, pelo olhar e pela palavra daquele que se
dispõe a testemunhar um conhecimento temperado pela memória do vivido, pelo
sentimento e pela razão. Pela subjectividade, portanto.
Neste tempo difícil, por vezes alucinado e assustador mas também maravilhoso
em muitos aspectos, o educador participa no processo humano de contágio com
uma responsabilidade acrescida. Ele é, no pleno sentido da expressão, um
adulto de referência. Um adulto que, ao convocar a atenção para um testemunho
"vivo", estabelece uma relação de frente a frente que permite ao educando descobrir-se
como ser especial e único. Esta é, como sabemos, uma experiência indispensável
do ponto de vista humano, sobretudo num mundo cada vez mais configurado pela
impessoalidade das relações e pelo anonimato tipico dos ciberespaços.
Como lembra o filósofo Emmanuel Levinas, o ser humano não é único como a Torre
Eiffel ou a Joconda. Ele é único pela irredutibilidade do segredo que é a sua
interioridade. E o respeito por esta interioridade passa pelo reconhecimento
do direito à intimidade do outro mas, também, pela existência de espaços para
que essa intimidade e esse segredo possam, em liberdade, revelar-se.
O educador detém, pois, um poder inquestionável. Consciente deste facto, assumindo
a exigência ética que decorre do lugar que ocupa no processo de contágio humano,
o educador terá que responder com profissionalismo, com competência técnica
mas também com sentido ético à tarefa que lhe é confiada. Na verdade, para ser
educador já não basta ser um bom ensinante ou um técnico-especialista competente.
Ele terá que ser um agente de proximidade e de contágio atento aos sinais de
alteridade dos seus educandos e um gestor hábil do equílibrio necessário, mas
sempre difícil, entre o desejo de influência, inerente ao acto pedagógico, e
o risco de manipulação. Ele terá que estar particularmente vigilante em relação
às aprendizagens colaterais que derivam de um currículo oculto. Aquele que não
sendo previsto ou planificado, não deixa de marcar decisivamente o desenvolvimento
dos educandos. Ele terá que ser capaz de decidir em situações problemáticas
e, por vezes dilemáticas, do ponto de vista humano e ético. Terá também que
ser tolerante e paciente porque a aprendizagem é um processo lento e tacteante.
Terá que ser tudo isso porque da forma como souber ser atento, tolerante e paciente
depende a lição sobre a atenção, a tolerância e a paciência. Ele terá, ainda,
que ser optimista, terá que acreditar para que outros acreditem, mesmo quando
a vida, a sua, lhe faça perder a capacidade de sorrir e de acreditar.
Agora digam-me, por tudo isto, não merece esta profissão mais respeito e consideração?
Num mundo em que é tão dificíl ser adulto, quanto mais um adulto de referência,
não é legitímo que o educador exija da sociedade reconhecimento e condições
de trabalho?
Isabel Baptista
Universidade Portucalense
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