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A Construção da Interculturalidade

A mudança

Parece claro que os professores só desejam mudanças, novos materiais de ensino e outras alternativas, quando constatam que há muito que fazem tudo da mesma maneira, que usam sempre o mesmo manual, utilizam sempre as mesmas estratégias, etc. Comparar-se com o outro, que faz de modo diferente, implica em primeiro lugar conhecer-se a si próprio, tornar visível as suas práticas e representações sociais, correlacionadamente com a sua própria biografia, que suporta tais atitudes e condutas. Depois, em segundo lugar, implica contactar com a alteridade e perceber as alternativas à monoculturalidade, porventura do seu eu profissional.
Os docentes, e outros profissionais, caem não raras vezes na tentação de considerar o que sucede habitualmente nas suas vidas quotidianas como o modo como efectivamente devem ser as coisas, as práticas e as ideias, para sempre e em todas os espaços. É o chamado etnocentrismo comum a todos os mortais e a todas as culturas que urge ser relativizado.
É por isso que defendo a necessidade de colocar a antropologia da educação como estudo curricular obrigatório na formação inicial de professores, independentemente do ramo de ensino. Mais que ao nível técnico, didáctico, embora aqui também, é mais ao nível da formação pessoal, social e profissional do docente, do ser professor, que ela terá um importante papel a desempenhar. Ao nível das atitudes e da necessária comunicação intercultural entre todos os protagonistas do acto educativo: professores, alunos, famílias e comunidades.
Por outro lado, há que pensar na formação contínua sempre, e não apenas para adequação a uma reforma que se impõe normativamente. A formação contínua não pode ser vista apenas como uma reciclagem (Nóvoa, 1991: 18). Há que pensar numa nova forma de fazer formação contínua, uma forma baseada essencialmente na investigação - na investigação por exemplo das histórias de vida dos alunos com que se lida, da própria autobiografia do docente e dos colegas, para se saber quem se é, quem se quer ser e como e quem são os outros. Enfim, uma formação contínua muito baseada também na reflexão: "A formação não se constrói por acumulação (de cursos, de conhecimentos ou de técnicas), mas sim através de um trabalho de reflexividade crítica sobre as práticas e de (re)construção permanente da identidade pessoal. Por isso é tão importante investir a pessoa e dar um estatuto ao saber da experiência" (Nóvoa, 1991: 23).

O monge e o hábito

Diz António Nóvoa que "cada um tem o seu modelo próprio de organizar as aulas, de se movimentar na sala, de se dirigir aos alunos, de utilizar os meios pedagógicos, um modo que constitui uma espécie de segunda pele profissional. Há aqui um efeito de rigidez que, num certo sentido, torna os professores indisponíveis para a mudança. E é verdade que os profissionais do ensino são por vezes muito rígidos, manifestando uma grande dificuldade em abandonar certas práticas, nomeadamente quando foram empregues com sucesso em momentos difíceis da sua vida profissional". (Nóvoa, 1992: 16, 17).
É nessa perspectiva, de que as pessoas, os profissionais, os professores, que sendo adultos, já têm pilares profissionais, culturais e cognitivos, e portanto um inconsciente prático, o habitus de Bourdieu, se tem de pensar numa formação que passe pela reflexão das suas próprias práticas e dos contextos onde actuam ou actuaram. Perrenoud (1993: 35), refere que a mudança de práticas passa justamente por essa transformação do habitus, a que junta "a disponibilização de modelos de acção [...]", já que a prática pedagógica "nunca é mera concretização de receitas, modelos didácticos, esquemas conscientes de acção".
A prática de confrontar a actividade das aulas da "nossa escola" com as de outras escolas, de outras sociedades contemporâneas, ou mesmo do passado, ou ainda mesmo com outros contextos institucionais, de fazer uma releitura da experiência (Huberman, 1983), serve para ampliar a visão da gama de possibilidades existentes quanto à eficácia da organização do ensino e aprendizagem nos vários grupos humanos.
Por outro lado, a prática de pensar a própria aula, de conseguir ser actor da mesma e simultaneamente investigador, de conseguir estar assim dentro e fora, pode tornar o professor não só mais reflexivo e crítico de si mesmo, como contribui também para evitar a rotina e os anacronismos que tantas vezes acompanham o seu quotidiano escolar.
Em parte, é também a este assunto que se está já a referir Paulo Freire na sua obra Pedagogia do oprimido (1974a). Nela há a ideia de que a função da educação é domesticar ou libertar as pessoas. Freire fala mais de "conscientização" do que propriamente da construção de um pensamento reflexivo, embora não se descortine grandes diferenças entre os dois processos.
E a reflexividade, essa tomada de consciência, de acordo com o método de Paulo Freire, é muito procurada também a partir de histórias de vida e narrativas dos quotidianos. A ideia é que "podemos conhecer aquilo que conhecemos colocando-nos por trás das nossas experiências passadas e precedentes. Quanto mais formos capazes de descobrir porque somos aquilo que somos, tanto mais nos será possível compreender porque é que a realidade é o que é" (Freire, 1974b: 44).
De facto, sem uma reflexão pessoal, não há verdadeiramente formação. Não basta mudar a indumentária do professor - o hábito do monge -, é preciso alterar atitudes e representações, para se poder esperar mudança de práticas. É preciso alterar o habitus do monge - dos profissionais - para que haja de facto formação. E quem se forma, acaba, como vimos, por ser o próprio professor, que nunca parte do zero. Por isso falei nos textos anteriores, de (auto)construção, de (auto)formação. É que para haver mudanças pessoais, o profissional tem que operar metamorfoses na sua identidade. Tem que mudar o que faz mas também o que é. Mudar-se a si próprio. Para que haja mudança, o docente ou qualquer outro profissional tem que se disponibilizar a tomá-la a seu cargo. Tem de ser sujeito dela.

O profissional como pessoa intercultural

O desenvolvimento pessoal e profissional de cada professor, acaba assim por ser visto como um percurso de vida e formação em que a pessoa que habita no professor, se constrói por um processo global de autonomização, em busca do seu devir, do seu projecto, da sua própria identidade como processo. Uma identidade que se pretende como capaz de entender e comunicar com a alteridade, de "fazer alongar as racionalidades" (Stoer, 1994: 22), logo, uma identidade intercultural. O professor deve construir-se como uma pessoa intercultural.
O método biográfico e o método comparativo ao serviço da formação, permitem relativizar as formas de construção social das atitudes e uma tomada de consciência sobre as mesmas, bem como entender ainda a construção do próprio entendimento. Trata-se fundamentalmente da investida na construção do professor investigador de que já tinha falado (Vieira, 1992) e que Zeichner (1993: 90) também defende, entre outros: "A investigação obriga a ver de forma precisa e diferenciada os fenómenos de que geralmente nos apercebemos de uma maneira global e difusa. Por exemplo, ao assumirmos uma atitude de investigação etnológica, podemos, durante um trajecto de elevador, descobrir um mundo de interacções, de códigos, de estratégias que nos tinham passado despercebidos, quando é bem verdade que apanhamos o elevador frequentemente. Da mesma forma, podemos descobrir nuances, categorias, e até factos que não estavam assim tão escondidos, quando é necessário codificar as interacções professor-alunos ou registar as sucessivas actividades de apenas um aluno. A investigação obriga a escutar e a olhar com mais atenção [...]. A investigação obriga a ter em conta a diferença e a diversidade [...]. O que a investigação traz de insubstituível, é o confronto com o real [...] (Perrenoud, 1993: 122, 123).
A abertura à alteridade e portanto também à mudança, tem uma matriz directora que há que procurar na história de vida de cada um, pelo que nem sempre resultam dos mesmos constrangimentos, oportunidades ou modelos vividos. Na vida de cada sujeito, há acontecimentos críticos, momentos que estimulam o pensamento, que fazem pensar duas e três vezes antes de escolher um caminho específico. A investigação antropológica e particularmente a metodologia das histórias de vida permite reconstruir alguns desses momentos, por vezes particularmente dramáticos, onde se estimula, constrói e reconstrói a capacidade de reflexão sobre o quotidiano, e que levam a opções, a tomadas de posição, por vezes feitas em contextos de grande conflito intelectual e emocional. A antropo-análise e a metodologia das histórias de vida permitem aceder à construção do homem, isto é, à construção identitária e às metamorfoses que a acompanham. E permitem também minimizar as práticas e representações monoculturais e encetar o alongar da interculturalidade na pessoa de cada profissional.

Ricardo Vieira
Escola Superior de Educação de Leiria
e Universidade de Aveiro

Bibliografia referenciada

  • FREIRE, Paulo (1974a). Pedagogia do Oprimido, Rio de Janeiro: Editora Paz e Terra.
  • FREIRE, Paulo (1974b). Uma Educação para a Liberdade, Porto: Textos Marginais.
  • HUBERMAN, A.M. (1983). Comment S' Opèrent les Changements en Éducation: Contribution à L' Etude de L' Innovation, Lausanne: UNESCO.html">UNESCO.
  • NÓVOA, António, et al. (1991). Ciências da Educação e Mudança, Porto: S.P.C.E., Afrontamento.
  • NÓVOA, António (Org.). (1992). Vidas de Professores, Porto: Porto Editora.
  • PERRENOUD, Phillippe (1993). Práticas Pedagógicas, Profissão Docente e Formação, Lisboa: D. Quixote.
  • STOER, Stephen R. (1994). "Construindo a escola democrática através do campo da recontextualização pedagógica" Revista de Educação, Sociedade e Culturas, 1.
  • VIEIRA, Ricardo (1992). Entre a Escola e o Lar, Lisboa: Escher.
  • ZEICHNER (1993). A Formação Reflexiva de Professores: Ideias e Práticas, Lisboa: Educa.

  
Ficha do Artigo
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Autoria:

Ricardo Vieira
Escola Superior de Educação de Leiria, ESE-IPLeiria. Investigador do CIID - Centro de Investigação Identidades e Diversidades
Ricardo Vieira
Escola Superior de Educação de Leiria, ESE-IPLeiria. Investigador do CIID - Centro de Investigação Identidades e Diversidades

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