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Guilhermino Monteiro à conversa com o professor Cândido Lima

(um exercício de perguntas e respostas entre dois homens ligados à música)

P. Queria começar por recordar o livrinho que escreveu nos inícios de 70, e que, para mim, na altura como aluno, constituiu uma novidade.

R. É interessante que me fale desse "livro", termo pomposo para um conjunto de tópicos e esquemas. Ao longo dos anos, vários professores e estudantes de várias regiões do país confessam, com entusiasmo, a sua utilidade. Na época foi dramático porque não tinha dinheiro, e a edição tornou-se um problema. Entretanto, veio o 25 de Abril e fiquei na expectativa de uma distribuição, logo paralisada. O que lá dizia fui cumprindo anos mais tarde, mas se mo pergunta, não apareceram os trabalhos teóricos que aí preconizava.

P. Não há actualmente teorização, digamos, portuguesa, em torno da Composição?

R. Há trabalho pedagógico a nível interno porque entretanto nasceram várias escolas e surgiram novos compositores; mas, nesse "livro" havia planos para serem desenvolvidos ao longo dos anos e destinados a pessoas de várias especialidades. Escrevi a partir de 1976 milhares de páginas. No plano escolar, fiz, a pedido da Associação de Estudantes do Conservatório de Música do Porto, um outro "livrinho", se bem me recordo do nome, Elementos de Composição Musical, com novas perspectivas, associando-lhe, por exemplo, estruturas das Matemáticas Elementares, numa época em que exercícios e composições com o auxílio da informática pura foram tentados também com alguns alunos para aí vocacionados (1980/81). Tentei sempre o cruzamento de disciplinas de diversa natureza, mas sem êxito junto da classe docente ou dos poderes constituídos, e mesmo dos alunos, sujeitos aos programas de há décadas e ao tipo de exames da época.

P. Como perspectiva a Composição? Quais são os novos caminhos da Música?

R. É necessária uma reflexão sobre a Composição como actividade em si mesma em interacção com outras disciplinas. Antigamente, para mim, nos Conservatórios, era a disciplina menos importante (programas, professores, metodologias); a mais importante seria, teoricamente, a Formação Musical. Pouco depois, mudei de ângulo de análise: a Composição é o centro de gravidade de toda a actividade musical, mesmo no ensino das Escolas de Música. É necessário compreender o que há de lógico nisto: a Composição-Criação é o centro nevrálgico; mais do que a resultante de uma causa acústica, é a exteriorização da emoção, da existência humana e da sua plurifuncionalidade. O acto de criar pertence ao pianista, ao violinista, ao trombonista, ao baterista, etc. Mas, sem o conceito de composição-criação no seu sentido próprio (a obra), estes não existem.

P. Que dimensão tem a liberdade para o compositor?

R. Os compositores, a Composição são, por vezes, desrespeitados e os profissionais, esquecidos; se me fala de Escola, isso é válido para os alunos potenciais e reais criadores de arte. A liberdade não é só uma palavra aplicada a alguns sectores da vida humana; a sociedade não pode (não deveria) cercear a liberdade do pensamento artístico na sua componente disciplinar da composição. Em Música, também, naquilo que ela tem de específico e individual. Não se pensa muito nisso. Afinal, estão em causa direitos humanos: os mecanismos políticos e sociais impedem o direito de criar e de divulgar opções estéticas aparentemente ou não, de minorias. Hoje, os mecenas são os padrões auditivos do público. Eu contesto-os (os padrões) há anos e já o fiz sentir: na rádio, na televisão, na imprensa, na escola, exercendo modestamente o meu papel cívico e crítico. O que é novo é sempre difícil em certas camadas da sociedade. Falta pedagogia de política cultural e artística, musical sobretudo, junto das classes dirigentes. A liberdade, mesmo hoje em Portugal existe e não existe.

P. E os estudantes de Composição?

R. Os estudantes e os jovens compositores não ouvem as peças que compõem porque não há nem orquestras, nem grupos instrumentais, nem solistas que as toquem, salvo raras excepções. Hoje, continua a haver muitas possibilidades de o aluno instrumentista, solista ou de orquestra se exprimir em repertórios convencionais, mas, em relação ao que é novo, há pouca abertura. Em relação às orquestras e aos solistas, uns e outros dizem: "o público não aceita, não gosta, etc....", e o público dirá: "não nos fazem ouvir..."... Há que tentar e investir em novos caminhos. Os gostos individuais de um profissional não deviam ser impeditivos de comunicar novas músicas, novos compositores.

P. É o círculo vicioso...

P. Isso... A Composição é o centro de gravidade à volta do qual se move o intérprete, o musicólogo, o professor, como já foi dito. Mas, muitos gostavam que a música clássica do século XX não existisse... Na Escola e na sociedade portuguesas também os há. Em l983/84, quando se iniciou a Reforma do Ensino da Música, no âmbito do famigerado "310", adverti para problemas desta índole. A própria expressão "Análise e Técnicas de Composição" (dividida em três disciplinas), mostra que os seus autores não se aperceberam das consequências a nível global do país. Pensaram em função de meios privilegiados, restritos e fulanizados. Eu adverti que isso ia dar origem a assimetrias, e o incentivo a novos compositores passou a ser demasiado localizado. A autonomia pedagógica como um direito legítimo, trouxe consequências negativas claramente previsíveis há quinze anos e designadamente na Composição, porque gerou equívocos de alguma gravidade.

P. O Compositor sente-se marginalizado ... ou hostilizado....

R. É da natureza das coisas, ou dos hábitos da sociedade. Mas o que está em causa é um direito, o direito `a diferença, à sua identidade, como compositor, raras vezes em sintonia com o "status quo" dos padrões auditivos estabelecidos. Repare: quando analisamos a obra de arte vamos encontrar culturas e linhagens, o que é um dos elementos mais interessantes na análise da obra de arte. Por exemplo, encontrar nas obras de Beethoven, Schubert, Chopin, Brahms, etc., as músicas populares nelas presentes, ou na obra de um Xenakis, os elementos da cultura clássica e das músicas asiáticas, ou em Ligeti, elementos culturais da Oceania ou das Caraíbas, ou dos Beatles, músicas de feição irlandesa ou escocesa, etc. A integração de um criador no seu contexto cultural , social, histórico, poderia ajudar. Podíamos fazer o mesmo para Portugal, em relação ao Jorge Peixinho, à Constança Capdeville, já falecidos, ou em relação a todos nós, compositores. O que acontece é que hoje existe uma desinformação e má formação estética. Para os grandes detentores do poder económico, a Composição ou a Criação, pouco valem porque é um domínio não rentável (o de tradição clássica claro...) Esta postura cultural é transportada para níveis macroscópicos: televisões, rádio, imprensa...

P. A situação é grave...

R. É e não é. Há conjunturas ora mais favoráveis, ora menos favoráveis, e claro que há sempre agentes culturais lúcidos, mais ou menos efémeros, mais ou menos duradoiros. A essência e a vitalidade de uma cultura vive destas oscilações, muitas vezes com eixos invisíveis.

P. Gostaria de enviar alguma mensagem aos professores de música do Ensino Básico?

R. Que desenvolvam o diálogo com fontes credíveis de informação musical e pedagógica, sem que isso leve à criação de fronteiras musicais e incompatibilidades com o contexto psicológico, cultural, humano e afectivo do estudante. Seria necessário que houvesse um corpo de doutrina que fosse possível englobar e flexibilizar para que não houvesse desequilíbrios. Que façam lucidamente reflexão sobre os próprios programas no sentido de fazerem reajustamentos, e o façam sentir junto das Entidades, até porque penso que os professores do Ensino Básico têm sido mais clarividentes ao longo dos anos do que o foram os próprios Conservatórios e Escolas de Música, com o senão de, durante anos, irem aos programas e hábitos dos Conservatórios buscar também vícios de pedagogia e informação inadequada ao ensino não vocacional.

Entrevista conduzida por Guilhermino Monteiro


  
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Autoria:

Guilhermino Monteiro
Escola Secundária do Castêlo da Maia
Guilhermino Monteiro
Escola Secundária do Castêlo da Maia

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