NUMA das suas enigmáticas ficções, Jorge Luis Borges fala ainda e sempre de uma infindável biblioteca de Babel e aborda sobretudo de forma superior o lado oculto dos livros que permanecem nesse labirinto de limites quase indecifráveis. Mas a biblioteca idealizada pelo autor de Aleph penetra na zona intemporal das coisas, revela-se como apologia dos nossos actos e uma absoluta guardiã de muitos prodigiosos arcanos na eternidade do tempo. E por aí se descobre, pois, esse mundo maravilhoso, na simbologia dos sinais concretos que melhor a corporizam (espaços, papel, sinais, letras, iluminuras, desenhos, bites, memória), por entre muitos sonhos e segredos e na certeza antecipada de nunca existirem 'dois livros iguais' já que cada um revela por si esse universo próprio, identificado nas manchas, linhas, formas e nervuras da própria encadernação. E assim a literatura e a poesia se arvoram depois como forma de acção dinâmica e actualizada no conhecimento do mundo e de todas as coisas, sendo o ofício de ler o mais directo, natural e objectivo complemento. Sabemos como não existem falsos alçapões ou equívocos na actualização dessa totalidade e a biblioteca cumpre uma função que jamais se não esquece, porque o descobridor de livros sabe sempre como encontrar ou desvendar outros universos. E por isso Jorge Luis Borges nos recorda: 'Se a honra, a sabedoria e a felicidade não são para mim, que pelo menos o sejam para os outros. Que o céu exista, mesmo que o meu lugar seja no inferno. Que eu seja ultrajado e aniquilado, mas que, num instante, para uma só pessoa, Tu, enorme Biblioteca, se justifique'. Ora, na intenção primordial que justifica este trabalho enciclopédico de Ramiro Teixeira, com o título geral de 'As Origens da Literatura' e incidindo o segundo volume no 'Humanismo, Renascimento e Reforma', o que mais sobressai é esse sentido pedagógico e informativo de dar a conhecer ao leitor as obras e autores que, num período literário que foi tão enriquecedor nos diversos domínios da expressão criadora (poesia, filosofia, prosa ficcional, pintura, escultura, etc.), mais se destacaram na valorização do pensamento humanista dos sécs. XV e XVI. Mas Ramiro Teixeira traça essas coordenadas dentro de um espírito de verdadeira divulgação, obedecendo a um critério que é mais historiográfico do que crítico, mais biográfico do que especulativo sobre as diferentes personalidades dos grandes humanistas de que descreve as linhas essenciais do seu percurso e em que se destacam Erasmo, Tomás More, Calvino ou Damião de Góis. A condição de excelente bibliófilo aliada ao sentido crítico de quem muito se tem interessado pela literatura portuguesa, nas abordagens que tem feito em jornais e revistas literárias, revelam neste trabalho essa intenção de querer ser um divulgador da 'obra' literária sem desejar ao mesmo tempo ser dela um erudito ou um crítico que aproveite a oportunidade para exprimir os seus critérios de análise e de interpretação. Não, nada disso. Quanto a nós, o que Ramiro Teixeira procura pôr em evidência, nos propósitos didácticos de que parte na elaboração deste trabalho de pesquisa e divulgação, é tão-só (e isso não é pouco nem deixa de ter a sua verdadeira importância cultural) colocar ao dispor do leitor as linhas primordiais das grandes obras e dos autores de quem não escasseiam referências, mas que nem sempre se situam na sua clara tendência epocal, ou fazer com que esta se relacione, em rigor, com outras obras anteriores ou posteriores, sempre enquadradas no período estudado e interpretado como claramente aparece neste segundo volume de 'As Origens da Literatura'. E por isso, sim, uma vez mais a literatura é aqui colocada em questão, como forma de diálogo bem informado, no exacto sentido de ser uma forma de superior comunicação com os outros, ontem e hoje, claro, e assim nunca nos deixamos de interrogar: para que serve a literatura? qual a sua verdadeira função? deve ou não ser actuante?, deve comunicar e participar? Ora, para que serve a literatura e o que sempre representa na nossa formação integral, sabemo-lo todos e sabe aquele leitor que melhor'sabe ler' para lá do que está escrito, que sabe olhar o 'espaço invisível' em que o visível se vê, enfim, que sabe encarar um livro não apenas como objecto de prazer, mas como acto fundamental de entender esse 'espaço'aberto, total e absolutamente povoado com os sonhos e visões de todos aqueles que, pela criação literária, sempre desejam transformar em valores o sentido de mudança da própria vida. E é por isso que a literatura, hoje e nesse passado a que o trabalho de Ramiro Teixeira nos faz remontar, se pode e deve questionar nos seus elementos essenciais: ser ou não uma forma de comunicação com os outros, ser ou não esse modo único e singular de 'transformar' ou 'modificar' a vida em todos os sentidos. Assim, nesse propósito de a cada passo entender a obra literária não como forma de'perseguição' e antes de interpretação lúcida e sensível dentro dos seus próprios critérios, mesmo sem questionar o sentido das obras e dos autores das quais oferece as linhas fundamentais de pensamento e de criação, Ramiro Teixeira acaba por construir uma obra que, no intuito enciclopédico que a consubstancia, se apresenta como uma espécie de admirável 'breviário' para aqueles leitores que desejem estudar com outra profundidade essa época do Renascimento e da Reforma - um dos períodos mais ricos e elevados da cultura europeia e portuguesa de todos os tempos. Como trabalho realizado num claro escrúpulo e rigor de investigação e divulgação, podemos dizer que a qualidade ensaística e histórico-literária deste volume de 'As Origens da Literatura' se integra na mesma preocupação crítica de quem não perde tempo a enaltecer obras de segunda ou de terceira e, quanto a nós, entende e tem exercido a crítica como forma de valorização cultural longe de sectarismos ideológicos ou pessoais, sem obedecer aos pressupostos de falsas interpretações - e isso é um aspecto determinante para se compreender melhor o profundo sentido literário deste trabalho biográfico e ensaístico. Serafim Ferreira
Ramiro Teixeira HUMANISMO, RENASCIMENTO E REFORMA 'As Origens da Literatura' / 2º. vol. Lello Editores / Porto, 1997.
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