28 de Março de 1933: "Fui convocado por Goebbels (...) para saber, para minha grande surpresa, que o Ministro da Propaganda do III Reich tinha sido encarregado por Hitler para me oferecer a direcção do cinema alemão: "O Fuherer viu o seu filme "Metrópolis" e disse: eis o homem que criará cinema nacional-socialista". Nessa mesma noite deixei a Alemanha". Hoje, o assunto parece arrumado: não, Fritz Lang não se encontrou com Goebbels nas circunstâncias dramáticas que evocou, minuciosamente, em numerosas entrevistas. O seu passaporte não tem o carimbo de 30 de Março, mas indica uma primeira chegada a Paris em 28 de Junho, seguida de uma viagem de avião para Londres, de uma breve passagem por Berlim em Julho e de uma vinda definitiva para Paris em 21 de Julho. Portanto, a lenda de um Lang "flirtando", com o nazismo, deduzida de uma leitura simplista e apressada de filmes como "Os Nibelungos" e "Metrópolis", assim como uma notícia mais que duvidosa (a criação, a 27 de Março de 1933 de uma secção de "realização" da organização das células de empresa nacional-socialistas, com a participação anunciada de Lang, Luís Trenker e de outros nomes menos conhecidos) parece-me mais profundamente falsa que o discurso apoiado num mito, do cineasta sonhando o seu duelo com o nazismo (que ela dramatizará mais tarde em "Man Hunt"). Em Fevereiro de 1933, Lang termina a montagem de "O Testamento do Doutor. Mabuse". A 10, encontra o seu montador, o jovem Konrad von Molo, num comício de Hitler no Palácio dos Desportos, e explica-lhe que "não se pode ser simplesmente contra qualquer coisa, deve-se ouvir, pelo menos uma vez, o que eles dizem". Ouve o discurso onde o novo Chanceler anuncia o nascimento "de uma Alemanha de grandeza". "Tenho de dizer em nossa defesa", conta von Molo, "que nós fomos os únicos em todo o Palácio dos Desportos que não levantámos a mão para fazer a saudação hitleriana a cada peripécia, canto, de pé, sentado, todo o trá-lá-lá... Foi muito corajoso! É provável que tivéssemos tido vergonha de o fazer em frente um do outro". No fim do "Testamento do ...", os representantes da sociedade - um desempregado, um polícia... - assistem banzados a um incêndio ateado por Mabuse, que proclama: "O Estado sou eu" e quer levantar o seu império sobre o reino do crime. Durante a montagem do filme, Hitler foi chamado para chefiar o Governo (30 de Janeiro), o Reichstag foi incendiado (27 de Fevereiro), 44% dos eleitores alemães votaram nos nazis (5 de Março), a abertura do campo de concentração de Dachau foi anunciada oficialmente (20 de Março). Mas na altura, Hitler é sinónimo de segurança para a maioria dos alemães. A 28 de Março, Goebbels pronuncia um discurso-programa para os profissionais do Cinema, no seu Q.G. o Hotel Kaiserhof. Cita 4 filmes-modelo: "O Couraçado Potemkine" de Eisenstein, "Ana Karenina" de Goulding com Greta Garbo, "Os Nibelungos" de Lang e o recente "Der Rebbells" de Trenker e Kurt Benhardt. Lang está sentado na mesa de honra, perto de Goebbels. "Nós que conhecíamos Lang" contou o seu cenarista Emil Hasler - provavelmente social-democrata que ficou na Alemanha - "ficámos espantados. Mas não tivemos muito tempo para isso. Pois, no dia seguinte ou um dia mais tarde, Lang desapareceu". Mesmo se o passaporte diz a verdade, a página tinha sido voltada. A 29 de Março, o Conselho de Administração da UFA decide despedir os trabalhadores judeus. No mesmo dia, "O Testamento..." é proibido pela censura. "Por motivos políticos": o único comentário de Goebbels em 1938. O representante do Ministério do Interior na Comissão de Censura é mais explícito: "para os elementos comunistas, reduzidos à impotência na Alemanha, este filme, que mostra a organização de um bando de criminosos, com a sua divisão em campos de actividade (secção 1, 2, etc.) pode ser um verdadeiro manual para a preparação e execução de acções terroristas". Exportado ilegalmente, o filme estreou em Budapeste, Viena e em Paris em Maio. A presença de Fritz Lang não foi assinalada... muito menos em Berlim onde estreou no mesmo mês, uma versão sonorizada de "Siegfried". A partida de Lang marca a ruptura definitiva entre o nazismo e a cultura. O maior cineasta do país escolhia o exílio. É por isso que, ainda hoje, se procura na Alemanha razões menos honrosas (o seu divórcio com Thea von Harbou, um contrato em Paris...), ou, como Fassbinder, opondo-lhe a figura emblemática de Douglas Sirk. A atitude de Lang desde a sua chegada aos Estados Unidos mostra que, qualquer que tenha sido o seu impulso imediato, a sua reacção profunda ao nazismo foi sem ambiguidade. Mais, era então o único ou quase a ter hipóteses de escolha, semi-judeu - como Reinhold Schunzel, que ficou e rodou até 1937 - nem conhecido, nem denunciado como tal, tendo dado provas de dedicação nacionalista "Siegfried" ("Oferta ao Povo Alemão"), ao capitalismo ("Metrópolis"): "Tão prussiano como o seu monóculo" como disse Kurt Tucholsky". Se se quiser ler bem os seus filmes, encontrar-se-à sem dúvida a sua incompatibilidade com o novo regime. Goebbels tê-lo-à aconselhado a fazer liquidar Mabuse "pelo povo em fúria". Sabe-se o que Lang pensava dessa fúria. Enfim, a partida de Lang, marca a tomada de consciência do Cinema na história: uma relativização dolorosa, tanto que a adesão dos cineastas soviéticos à Revolução e a sua posterior decepção. Descobriu que a arte não é tudo, e não se pode exercer em qualquer lado, não importa em que condições. Ele tinha pensado em criar "a arte do nosso século" e apercebeu-se que tinha fornecido os utensílios para uma manipulação que se chamava propaganda. Paulo Teixeira de Sousa
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