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Criança trabalhadora também tem direito à Escola

João Carlos é uma criança trabalhadora de 10 anos de idade e faz parte de uma grande parcela da população brasileira de dois milhões de crianças com idade de dez a quatorze anos que trabalham para reforçar a renda familiar. Ele mora na Baixada Fluminense e é o mais velho de uma família de quatro irmãos. Seu pai está desempregado e há mais de um ano tenta sobreviver de "biscates", embora tenha trabalhado por muitos anos como funcionário de uma importante fábrica da cidade que, com a crise do país, acabou fechando, deixando desempregados muitos trabalhadores daquela região. A mãe de João Carlos trabalha como faxineira em casas da Zona Sul da cidade do Rio de Janeiro, saindo de casa pela manhã e só voltando à noite. Por isso, o pai e a mãe de João Carlos têm pouco tempo para conviver com os filhos, sobrando de seu dia de trabalho apenas algumas horas à noite. Há muito tempo eles sentem dificuldades para sustentar a família, o que os obrigou a transferir para João Carlos, como filho mais velho, boa parte desta responsabilidade.

Além de trabalhar e estudar, João Carlos também ajuda nas horas de folga, tomando conta dos irmãos mais novos. Aprendeu desde muito pequeno com sua família sobre a importância de ajudar uns aos outros, para que juntos possam superar as dificuldades de cada dia. O ditado popular: "A União Faz a Força" é compreendido e vivido por João Carlos, criança trabalhadora que entre as obrigações do dia a dia consegue continuar a ser criança, a sorrir e a se alegrar, a se aborrecer e a brincar de brigar, como todas as outras crianças.

Tanto em casa, quanto no trabalho, João Carlos desempenha com bastante sucesso suas funções. É capaz de assumir responsabilidades que muitos adultos não conseguem. Porém no mundo da escola, toda a criatividade e astucia com as quais João Carlos é conhecido, perdem completamente o sentido e o vigor. No ambiente escolar, a criança alegre e contente dá lugar ao aluno tristonho e ensimesmado. João Carlos pouco consegue se identificar com os rituais da escola, chegando mesmo a se perguntar: "Aquela escola não é boa para mim. Nasci mesmo para trabalhar. Estudar é coisa para outros meninos que são mais inteligentes.

Muito nos preocupa o conceito que João Carlos faz de si. Através de suas palavras é possível perceber que ele desacredita em sua capacidade de conviver "naquele" mundo escolar e, mais sério ainda, se julga pouco inteligente para os estudos.

Através de um olhar mais atento, não é difícil refazer o caminho percorrido por João Carlos ao construir sua própria imagem. A partir do convívio no mundo do trabalho ele fica mais forte mas o mesmo não acontece no mundo da escola. Na escola João Carlos foi aprendendo a não gostar de si mesmo, a não acreditar em si, a não se sentir capaz e assim foi se sentindo pouco "inteligente" e acreditando não ser capaz de aprender. O drama vivido por João Carlos faz parte da vida de milhões de outros pequenos brasileiros das classes populares. Crianças que são "safas" na vida e "debilitadas" na escola. Uma debilitação construída social e historicamente e imposta a estas crianças quando a elas só é oferecida uma escola que só valoriza os padrões de uma outra classe e de uma outra cultura, diferente da delas.

João Carlos não entrou na escola à toa. Os estudos fazem parte dos valores de sua família que procura investir em seus estudos "para que tenha uma vida diferente de seus pais". A história do João Carlos põe por terra a idéia que a classe popular é desinteressada com os estudos de seus filhos. A criança trabalhadora permanece, em muitos casos, por anos e anos em uma mesma série. A escola a faz repetir tantas vezes o mesmo ano, sem contribuir com novas atitudes, por exemplo, com o seu aprimoramento escolar. O processo de repetir faz com que a criança da classe trabalhadora internalize a sua própria incompetência. Ninguém precisa dizer isto para ela. Através de seu insucesso ela vai compreendendo que aquele não é o melhor lugar para ela.

"As coisas são assim mesmo. Uns nascem para o trabalho, e outros para o estudo". João Carlos aprendeu cedo a divisão/existente entre o trabalho manual e o trabalho intelectual. Compreendeu aos poucos que o seu lugar não é lá na escola, e sim na rua trabalhando. Sim, as famílias das classes trabalhadoras insistem e investem na permanência de seus filhos na escola para que não vivam os mesmos sacrifícios que seus pais.

João Carlos é apenas um representante dos mais de vinte e quatro milhões de crianças e adolescentes que vivem em famílias com renda de até meio salário mínimo por mês - que não encontram outras alternativas em suas vidas a não ser o trabalho.

Em situação de pesquisa fizemos contatos com adultos que foram crianças trabalhadoras e todos foram unânimes ao dizer sobre a importância do trabalho para a formação do caráter, a convivência em grupo e o desenvolvimento do senso de responsabilidade. Freqüentemente ouço dos responsáveis das crianças pesquisas - talvez enxergando a realidade como realmente é, ou quem sabe, para amenizar a situação -"Trabalho nunca matou ninguém ou ainda como no dito popular:" "Trabalho de criança é pouco e quem não aproveita é louco". Marx e Engels em: Textos Sobre Ensino e Educação, Editora Moraes nos mostram algumas reflexões sobre o trabalho infantil e também não o vêm como o grande vilão da história porém, nos alertam sobre a qualidade da escola para a classe trabalhadora. Uma escola capaz de desenvolver o aluno trabalhador de forma plena. Antônio Ermínio de Morais - acionista majoritário de um dos maiores grupos empresariais do país - também foi uma criança trabalhadora e, embora seja exceção e a mesma só faz confirmar a regra, digo exceção porque são raríssimos os casos de crianças trabalhadoras que se transformam em grandes empresários nestes país; em recente entrevista para o programa Por Acaso da TV.E reprisado em 10/12/00, ressaltou a importância do trabalho realizado por ele quando criança, para sua formação do profissional. Recuperando a história de um recente passado do nosso país, encontramos filhos de emigrantes Portugueses por exemplo trabalhando no comércio com seus pais e, em sua grande maioria se transformaram em empresários e comerciantes de relativo sucesso.

Aprendemos com todas essas pessoas sobre alguns aspectos importantes do trabalho infantil e acreditamos junto com elas que o trabalho por si só não seja algo extremamente prejudicial para a formação das crianças das classes trabalhadoras porém, as condições de expoliação nas quais o trabalho infantil no Brasil vem se dando, fazem com que lancemos um olhar mais atento para a questão. O trabalho infantil "pode não matar ninguém" como disse a mãe de uma das crianças pesquisadas entretanto, sonhamos com uma sociedade de homens livres, que tenham direito não apenas ao trabalho, mas à cultura, ao conhecimento, ao prazer e ao lazer. Uma sociedade onde os seres quando crianças tenham o direito de ser apenas e unicamente crianças, independente de origem social, raça e credo.

A escola de João Carlos, assim como todas as outras escolas, não tem por objetivo lançar as crianças das classes trabalhadoras ao fracasso. No entanto, acaba por fazê-lo. Quem sabe se neste novo milênio, sejamos capazes de construir uma escola para as crianças das classes trabalhadoras que exerça uma pedagogia - ao exemplo do dito e vivido por Paulo Freire - alegre, tropical. Uma pedagogia do riso, uma pedagogia da pergunta, da curiosidade. Uma pedagogia do amanhã pelo hoje, uma pedagogia que acredita na possibilidade de transformar o mundo.

Lutamos por uma escola que contribua para que a professora possa, quem sabe, auxiliar na entrada, permanência e sucesso das crianças das classes populares no ambiente escolar, garantindo-lhes a aprendizagem da leitura e da escrita, tão importante numa sociedade como a nossa.

Margareth Martins de Araujo
Universidade Federal Fluminense - Brasil


  
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Edição:

N.º 99
Ano 10, Fevereiro 2001

Autoria:

Margareth Martins de Araujo
Univ. Federal Fluminense, Rio de Janeiro, Brasil
Margareth Martins de Araujo
Univ. Federal Fluminense, Rio de Janeiro, Brasil

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