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Mr. Capra Vai à Guerra ou "O Triunfo da Vontade" Revisitado

"Na noite de 11 de Fevereiro de 1942, (a minha mulher), sentou-se ao volante do nosso carro e levou-me até à Union Station, donde partia o meu comboio. Ao despedirmo-nos, deu-me um último beijo e fez-me uma derradeira recomendação: "ouve bem, querido. Esquece-te agora que és realizador e não comeces a querer dirigir o exército inteiro. Prometes?" É assim que, Frank Capra, escreve a sua partida de Los Angeles para Washington onde foi ocupar o seu lugar no Serviço de Transmissões. Enganou-se. Mal chegou, foi transferido para os Serviços Especiais, "criado para fazer levantar o moral das tropas". Aqui, vai ser responsável pela série de documentários com o título "Why We Fight". O objectivo era nas palavras do general Marshall Chefe do Estado-Maior do exército americano era: "para vencermos a guerra, é preciso sabermos vencer esta batalha de mentalização dos nossos jovens. Osborne e eu pensamos que a melhor maneira de o conseguirmos é através do cinema e que você, Capra, é o homem ideal para fazer os filmes que dêem a todos esses jovens as respostas que procuram... Uma série de documentários informativos - os primeiros da nossa História - que consigam explicar aos nossos soldados a razão porque lutamos e os princípios pelos quais nos batemos".
Capra ficou assustado e respondeu: "nunca fiz um documentário na vida". Mas aceitou.
A força, a coragem veio-lhe depois de ter visto "O Triunfo da Vontade" de Leni Riefenstahl, os comentários publicou-os na sua autobiografia "O Nome Acima do Título", em boa hora publicado em Portugal pela Cinemateca.
"Pouco tempo depois do General Marshall me ter encomendado a série de filmes "Why We Fight", destinados aos nossos militares, vi o apavorante filme de Leni Riefenstahl "Triumph des Willens", prelúdio de mau agoiro ao holocausto de ódio desencadeado por Hitler. Nem o próprio Satanás seria capaz de conceber um super espectáculo mais arrepiante que aquele.
Utilizando as instalações do império cinematográfico da UFA, dominado pelos nazis, Leni Riefenstahl fez o clássico filme de propaganda dos nossos tempos, um filme que era, simultaneamente a glorificação da guerra, a deificação de Hitler e a canonização dos seus apóstolos. Embora disfarçado sob a pompa e panóplia mística de uma ópera de Wagner, a sua mensagem era directa e brutal: nós, a Raça dos Senhores, somos os novos deuses, imparáveis e invencíveis!
"Triumph des Willens" não disparava armas, nem deixava cair bombas. Mas, como arma psicológica que era, o seu alvo era destruir a vontade de resistir e, nesse sentido, era tão letal como qualquer outra arma.
A abertura do filme era um magistral instrumento de deificação. Numa aura de música celestial, uma câmara invisível filmava o invisível espírito de Hitler, que descia das nuvens e estrelas do Valhalla a caminho da terra, pairando, cada vez mais baixo, sobre a belíssima paisagem da Alemanha rural.
À medida que o Messias do Mal ia tocando, com um esvoaçar de invisíveis asas, as chaminés das casas, enormes multidões de nazis em histeria saudavam a visitação com ovações de HEILS - oferecendo-lhe, em reconhecimento pela "sua vinda", o incenso da sua inconsciente adoração.
O Gotterdammerung explodia na banda sonora, qual desafio aos deuses da liberdade; o divino espectro aterrava numa pista do aeroporto e ficava completamente imobilizado. Depois - o silêncio.
A porta de um avião abria-se por artes mágicas, os contornos envoltos numa misteriosa sombra. Depois, o espírito divino assumia a forma humana - do divino Fuhrer - fardado, resplandecente, repleto de cruzes suásticas, como se de estigmas se tratasse. Dava um passo em frente, batia os calcanhares, abençoava os escolhidos com a saudação nazi - e Thor desencadeava os seus raios e coriscos. Um rugido valquiriano de SIEG HEIL! rompia o silêncio e repetia-se, se eco em eco, como um trovão numa cadeia de montanhas. O Congresso Nazi de Nuremberga acabava de inaugurar-se! Os cem mil homens das tropas de choque - com botas e armas, carregados de suásticas - esperavam imobilizados, completamente rígidos, enquanto o Ódio lhes passava revista, fila após fila, na sua marcha solitária até um altar de microfones feito. Os aparelhos de rádio difundiam, aos milhões, os gritos da Voz do Ódio: "somos a Raça de Senhores!", "SIEG HEIL!", repetiam, em coro, cem mil vozes. "Hoje, a Alemanha! Amanhã, o Mundo!" "SIEG HEIL", "SIEG HEIL", "SIEG HEIL".
Depois, Hitler passava por entre as fileiras dos seus super homens, que continuavam rígidos em posição de sentido. Siegfrieds loiros, de botas, arvorando estandartes onde a cruz suástica adejava ao vento, cujos rostos reflectiam uma insensata adoração pagã à medida que Hitler agarrava o braço direito de cada um deles, na saudação do guerreiro, e mergulhava os olhos nos olhos que tinha em frente, num amplexo hipnótico que exigia o juramento de sangue de obediência.
O massacre de inocentes ultrapassa a compreensão humana. Mas "Triumph des Willens" era um prenúncio mais que evidente do que iria acontecer - ou, pelo menos, devia funcionar como tal para qualquer mente que conseguisse assistir àquele horror sem deixar-se impressionar.
A mensagem do filme era, no entanto, directa e brutal: "O Poder, Um Poder Indestrutível, está nas nossas mãos! Que se rendam todos os débeis defensores da liberdade! Os humildes terão como única herança a terra que irá cobrir-lhes a sepultura! Rendam-se!".
Aquele filme paralizara a energia e vontade de reagir da Áustria, da Checoslováquia, da Escandinávia e França. Aquele filme paralizara, praticamente, a minha própria energia, deixando-me quase sem vontade de reagir: depois de o ver, regressei lentamente à minha secretária semidesfeita e lá me sentei sozinho, sem que ninguém desse por mim, naquela sala cheia de oficiais absortos, todos eles, nas suas próprias insuficiências e incapacidades para responder adequadamente ao desafio da guerra.
Sentei-me sozinho e pus-me a reflectir. Como poderia eu prepara um contra-ataque a "Triumph des Willens", fazer um filme que mantivesse bem viva a nossa vontade de resistir à Raça dos Senhores.
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"Utilizar os próprios filmes do inimigo para denunciar a escravatura da humanidade que esse inimigo se propunha atingir. Queria que os nossos soldados ouvissem os Nazis e os Japoneses gritar alto e bom som as suas pretensões a uma Raça dos Senhores. Os nossos soldados perceberiam então a razão porque os tinha obrigado a vestir uma farda. Eric Knight deu um salto na cadeira. "Frank, mesmo que nunca mais voltes a ter uma ideia na vida, esta já te basta para entrares na História. Tem qualquer coisa que me sabe a S. Tomás de Aquino: analisar primeiros os objectivos fundamentais do inimigo - para depois os destruir completamente".
Foi assim a origem de "Why We Fight", aquilo que o realizador Fernando Lopes considera "a melhor lição de montagem cinematográfica de todos os tempos".

Paulo Teixeira de Sousa
Escola Secundária de Soares dos Reis Especializada de Ensino Artístico


  
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Edição:

N.º 96
Ano 9, Novembro 2000

Autoria:

Paulo Teixeira de Sousa
Escola Secundária Especializada de Ensino Artístico de Soares dos Reis, Porto
Paulo Teixeira de Sousa
Escola Secundária Especializada de Ensino Artístico de Soares dos Reis, Porto

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