Página  >  Edições  >  N.º 94  >  João Lopes Carvalho em entrevista a "a Página"

João Lopes Carvalho em entrevista a "a Página"

O ensino profissional continuadesvalorizado e sem reconhecimento social

... um ensino de segunda escolha, associado a histórias de insucesso escolar

 

Licenciado em Ciências Geológicas pela Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, João Lopes Carvalho acabaria por divergir relativamente à sua área de formação inicial para se especializar, já em 1991, em Administração Escolar, pela Escola Superior de Educação do Porto. Foi professor do ensino secundário até 1994, exercendo actualmente funções de Coordenador Pedagógico Nacional da Escola Profissional Bento de Jesus Caraça, de membro da Comissão Técnico-Pedagógica desta instituição e representante da CGTP no Observatório Permanente de Concertação Social. Enquanto formador, João Lopes Carvalho orientou diversas acções de formação ligadas à administração educativa, destacando-se, entre outras, "Métodos e Técnicas de Avaliação" e "Desenvolvimento Curricular num Contexto de Autonomia", orientando também vários módulos de formação, como a "Operacionalização da Formação: Planificação, Métodos e Avaliação", desenvolvida no âmbito do Fundo Social Europeu. Um testemunho prático da realidade das escolas profissionais, relatado em entrevista à Página.

Há quatro anos foi publicado um relatório nacional onde se fazia a avaliação do sistema das escolas profissionais. Que conclusões saíram desse estudo?

No relatório elaborado pela equipa que incluia o actual ministro da Educação, Augusto Santos Silva, apontavam-se alguns constrangimentos ao desenvolvimento das escolas profissionais em Portugal, apesar de se admitir que o ensino profissional é um sub-sector do ensino secundário que encerra vastas potencialidades; nomeadamente na medida em que é inovador, já que, pela primeira vez, no contexto do sistema de ensino português, houve a possibilidade de as escolas disporem de autonomia pedagógica. Não foi, e não continua a ser um processo simples, porque a cultura burocrática de reprodução da escola tradicional revela-se também aqui.

As principais críticas desse relatório reportavam-se à deficiência de instalações, à necessidade de constituição de corpos docentes próprios, à própria organização interna das escolas e dos modelos de financiamento, bem como ao facto de o sistema de avaliação ainda não se encontrar consolidado.

O que evoluiu desde então?

As escolas profissionais são muito diferentes entre si, tanto na maneira de actuar como nos objectivos que se propõem atingir. No entanto, o que ressalta é facto de o ensino profissional ser, por circunstâncias sociais e culturais diversas, um ensino desvalorizado e com pouco reconhecimento social, um ensino de segunda escolha, associado a alunos com histórias de insucesso escolar. Mas isso tem vindo a mudar gradualmente.

Ou seja, não obstante as tentativas que se fizeram no sentido de acabar com as escolas profissionais - ainda há pouco tempo havia hesitações quanto à afirmação deste sub-sector de ensino, inclusivamente por parte de pessoas actualmente ligadas ao governo -, houve, por mérito próprio, uma afirmação.

Ao mesmo tempo, nota-se um maior reconhecimento social por parte das empresas. Enquanto há dez anos era necessário andar de "chapéu na mão" a tentar convencer as empresas a aceitar estágios, hoje não temos alunos para preencher as solicitações. Na área da informática, por exemplo.

Referia-me mais concretamente às fragilidades pedagógicas, organizacionais e mesmo de infraestruturas...

Houve escolas que fizeram investimentos avultados na renovação das suas infraestruturas, é certo, mas pessoalmente entendo isso como uma questão de estratégia: uns apostaram nas instalações, outros previligiaram a componente pedagógica e o desenvolvimento curricular em contexto de autonomia.

No que toca à constituição de quadros de professores, deve, antes de mais, distinguir-se dois tipos de docentes: o professor com experiência pedagógica, geralmente proveniente do ensino público, que lecciona as áreas sócio-culturais e científicas, e o técnico, que, não sendo docente, assegura a leccionação das áreas tecnológicas e práticas. Esta diversidade de percursos académicos e profissionais é positiva, porque gera riqueza de aprendizagens e permite uma maior aproximação das escolas ao mundo do trabalho.

A crítica implícita no relatório dirigia-se essencialmente ao facto de esta estrutura nem sempre ser acompanhada de uma reflexão constante acerca dos objectivos do ensino profissional e do desenvolvimento curricular, que conduziria à reprodução das metodologias e do método de avaliação da chamada "escola tradicional".

Nesse aspecto, pensa que houve desenvolvimentos?

Penso que sim, embora isso não seja linear. Admito que existam escolas que continuem a utilizar o teste escrito no final de cada período, ao invés de promover instrumentos de avaliação mais congruentes com um tipo de ensino vocacionado para a formação de competências transversais.

No modelo de escola tradicional há um programa que tem de ser cumprido, e não existe, na maior parte das vezes, oportunidade para promover a autonomia do aluno, a capacidade de trabalho em equipa e o desenvolvimento de uma metodologia centrada no trabalho de projecto. E isto é o que pode fazer a diferença entre os dois modelos.

Há também que fazer referência à questão do estatuto profissional dos professores das escolas profissionais - que não pode ser comparado ao dos restantes sub-sectores, já que estes têm de assegurar a inserção profissional e o acompanhamento dos estágios dos alunos, e onde o orientador de turma é também um orientador curricular -. Um processo que, a princípio, não terá tido o melhor acompanhamento por parte dos sindicatos. Reconheça-se neste domínio o papel da Fenprof, que conduziu o processo de negociações, para hoje estarmos próximos de discutir o próprio estatuto das escolas profissionais.

Actualmente, as escolas profissionais estão ainda inseridas no enquadramento jurídico do ensino particular e cooperativo, o que não corresponde, de forma alguma, à especificidade deste sub-sector. Espero que haja uma proposta por parte da tutela no sentido de se discutir o estatuto dos professores das escolas profissionais e de incentivar a criação de corpos docentes próprios, alargando o número de docentes a tempo inteiro.

Qual é a taxa real de empregabilidade do ensino profissional?

Actualmente ronda os 70%, o que pode considerar-se muito positivo. Aliás, a ideia de sucesso que perpassa nas estatísticas de empregabilidade do ensino profissional e tecnológico constantes no relatório da OCDE, têm base nos índices de inserção proporcionados pelo ensino profissional.

Na minha opinião, o ensino tecnológico alterou apenas a distribuição das cargas horárias, mantendo uma matriz organizacional e um programa rígidos, e não criou dispositivos de inserção sócio-profissional. Os alunos continuam confinados a salas de aula, e, salvo honrosas excepções, não há ligação às empresas, nem conselhos consultivos que transmitam à escola a inovação do exterior, para que esta possa servir como factor de reestruturação permanente do currículo.

As escolas profissionais devem ou não dar acesso ao ensino superior? Há quem julgue que não...

Na minha opinião, e na opinião daqueles que que acompanham este processo desde o início, seja no quadro da igualdade de oportunidades, seja no contexto da formação ao longo da vida, não se compreende porque razão as escolas profissionais não possam cumprir essa função.

Mas a principal vocação das escolas profissionais é ou não a de formar para o prosseguimento na vida activa?

O facto de o ensino secundário ter ou não uma vocação profissionalizante é uma polémica que atravessa actualmente as escolas, a administração e o governo. E, nesse sentido, o modelo da escola tradicional faliu. Ainda bem que já há quem o admita e o discuta publicamente, inclusivamente ao nível da administração escolar. Aliás, o anterior ministro da educação admitiu que as escolas do ensino público tradicional deveriam aproximar-se do modelo organizativo e das metodologias das escolas profissionais. Isso foi afirmado publicamente.

Diz-se que as escolas profissionais não devem dar acesso ao ensino superior porque funcionam como uma espécie de "trampolim" para a universidade. Eu penso que isso é falso. As escolas profissionais não devem preparar os jovens para uma profissão, devem prepará-los para um leque de profissões alargadas, e, no quadro da sua autonomia, criar dispositivos que ajudem os alunos que pretendem prosseguir estudos, sem prejuízo da aquisição de competências próprias destinadas a um determinado perfil profissional.

Nesse sentido, é curioso verificar que o actual ministro da educação defendesse ainda há uns meses - não sei qual é a posição dele agora - que as escolas profissionais não devessem proporcionar o acesso ao ensino superior.

De uma forma geral, que principais constrangimentos ainda subsistem?

O financiamento das escolas profissionais é uma das questões mais preocupantes, porque estas continuam a ser financiadas como se de acções de formação dispersas se tratasse. Mas as escolas têm uma continuidade curricular, não se compadecem com avaliações e saldos trimestrais ou anuais. E isto provoca grandes estrangulamentos orçamentais. É inadmissível que, actualmente, após um período de experiência superior a dez anos, as escolas continuem a chegar ao ponto de não terem dinheiro para pagar aos professores e algumas correrem mesmo o risco de fechar.

Isso demonstra que o sub-sector está ainda longe da consolidação...

O ensino profissional está consolidado em termos de afirmação no quadro do sistema educativo português, tendo o próprio governo, através do ex-ministro Guilherme d'Oliveira Martins, garantido que o financiamento das escolas profissionais estaria assegurado, quanto mais não fosse através do Orçamento de Estado. Porém, a verdade é que o financiamento continua a chegar a "conta-gotas"; ou seja, há uma discrepância entre a intenção e a prática.

Então, que apreciação faz da actuação do estado face ao ensino profissional?

A nível do discurso as intenções não podiam ser melhores. Mas o facto é que o número de lugares não tem sido alargado e existem actualmente muitos alunos sem conseguir matrícula. Uma das principais razões é a falta de financiamento, que, como já atrás referi, entrou em colapso.

E nos restantes países da união europeia, como funciona?

Penso que lá fora também existirão alguns problemas. Estive presente num encontro internacional sobre este tema, em Lyon, e um dos intervenientes, representante dos empresários alemães, criticava a má articulação do sistema dual, ou seja, da alternância entre o contexto académico e o contexto de trabalho. Existirá porventura uma justaposição das aprendizagens, e não uma articulação, como se pretende.

A escola deve trabalhar em parceria com as empresas, mas através de tutores qualificados que possam estabelecer a ponte entre os dois meios, identificando, nomeadamente, as necessidades de competências da empresa, para que a escola possa reestruturar continuamente o currículo e adaptar-se a essas transformações.

Existem então dificuldades na articulação da componente teórica com a componente prática?

Mais uma vez afirmo que este não é um ensino que prepara trabalhadores, mas sim cidadãos que consigam desenvolver competências que lhes permitam uma formação contínua ascendente. E nesse sentido é fundamental que, a par da promoção de saberes culturais e científicos, a escola se preocupe em identificar competências em aberto, ou seja, que saiba avaliar as necessidades das empresas, nomeadamente a partir dos relatórios de estágio, readaptando os programas a essas necessidades concretas. Ou seja, promover um "feed-back" contínuo entre o contexto de trabalho e a sala de aula.

Outra das críticas do relatório referia-se ao ensino modular. Os alunos estão ou não a ser avaliados a partir de uma estrutura modular?

Não há uma estrutura de avaliação modular na verdadeira acepção do termo, podendo diferir de uma escola para outra. Se entendermos a estrutura modular como o respeito integral pelo ritmo de aprendizagem, em que os alunos progridam por módulos e sejam certificados nessa base, a nível organizativo isso seria extremamente complexo. A avaliação deve passar pelo acompanhamento dos diversos ritmos de aprendizagem, usando metodologias centradas em actividades diferenciadas, ou seja, uma avaliação formativa.

Nesta questão da avaliação existe uma grande contradição. Por um lado, ela devia ser eminentemente formativa, decorrendo da própria filosofia da estrutura modular, mas acaba por ser fragmentada, ou seja, obriga-nos, no final de cada módulo, a emitir uma classificação de 0 a 20. Se não houver o cuidado de inseri-la num contexto mais vasto, corrigindo-a para uma forma de avaliação mais global, isso resultará necessariamente numa fragmentação da avaliação.

Existem dificuldades na coordenação pedagógica?

As tutelas das escolas profissionais podem ser muito variadas: autarquias, entidades públicas, entidades privadas, associações empresariais, sindicatos, sendo muito diferente a forma como cada uma interfere na actividade da escola. As escolas acabam por não ter uma verdadeira autonomia pedagógica, no sentido de não terem um projecto educativo determinado pelas necessidades pedagógicas dos alunos, existindo, por vezes, interferências muito fortes por parte das entidades promotoras.

No nosso caso (Escola Profissional Bento de Jesus Caraça), e de uma maneira simplista, temos um projecto educativo de escola, onde se incluem as grandes orientações da escola, o projecto educativo sócio-cultural, a Área de Integração, o sistema de avaliação - com ligeiras nuances -, e uma estratégia de inserção profissional comuns.No que toca ao restante, as delegações têm completa autonomia

De acordo com os diferentes contextos de trabalho...

Exactamente. Há um projecto educativo e um plano de actividades, e uma adaptação curricular de cada curso à realidade de cada contexto. Desde que se respeitem as grandes orientações da entidade promotora e daquilo que a escola determina centralmente, podem desenvolver-se projectos locais próprios. Neste sentido há dois campos muito claros: as forças centralizadoras e as da autonomia...

 

Entrevista conduzida por: Ricardo Jorge Costa
Fotografia: A Página

  
Ficha do Artigo
Imprimir Abrir como PDF

Edição:

N.º 94
Ano 9, Setembro 2000

Autoria:

João Lopes Carvalho
Coordenador Pedagógico Nacional da Escola Profissional Bento de Jesus Caraça
João Lopes Carvalho
Coordenador Pedagógico Nacional da Escola Profissional Bento de Jesus Caraça

Partilhar nas redes sociais:

|


Publicidade


Voltar ao Topo