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Estão licenciados ignorantes e desempregados

A rapariga licenciou-se. Finalmente é engenheira. Tanto ela como a família ficaram naturalmente felizes. Na vila fizeram festa. À maneira antiga os pais ofereceram-lhe um anel de brasão. Um anel de engenheira. Na secretaria da sua universidade, a que ela também chama escola, deram-lhe um certificado de Licenciada em "Engenharia de Caudas de Cão Perdigueiro".

Agora descobriu que ninguém dá o devido valor ao seu curso de engenheira, pese embora ter participado em todas as queimas das fitas, recepções ao caloiro e de ter tratado da pasta, das fitas e do grelo.

A rapariga, enquanto esperava por um emprego, ou mais provavelmente pela entrada no mestrado ? que será sobre uma pulga que incomoda a raça dos cães que lhe deram o título ?pensou candidatar-se à ocupação de professora. Cheia de alegres e juvenis intenções foi ao sindicato de professores perguntar se poderia ensinar matemática visto ser engenheira ? ainda que sem frequência da maldita disciplina de matemática desde o 12º ano ?mas não se importando de se ocupar da biologia ou das ciências naturais em geral, aceitando mesmo ocupar-se da oftalmologia ? caso esta ocupação existisse no básico ou secundário ? visto que se é verdade que o cão tem rabo não é menos verdade que também tem olhos.

A rapariga tem agora um problema. Acontece que nas nossas escolas faltam postos de trabalho e escasseiam lugares para tanta especialização e ocupação . Como é sabido as crianças e os jovens são poucos e não sendo tolos de todo, embora mal, lá vão transitando de ano. Temos assim, no nosso acervo profissional, mais uma licenciada desempregada.

Não fosse a vida de todos coisa curta e única e podíamos dar-nos ao luxo de brincar. Mas como a de qualquer um a vida destes jovens passa rápido e neste tempo de mudanças aceleradas quando derem por ela nem os querem para reformados. Mas ainda mais preocupante é a sorte ? ou falta de sorte ? das crianças e dos jovens que não têm direito a partilhar o trabalho de professoras e professores mas vão ficando apenas com o direito de partilhar com algumas pessoas a ocupação do tempo escolar.

A conjugação de vários factores levou a que se tenha cometido em Portugal, a partir de meados dos anos oitenta, um crime grave. A embriaguês neoliberal de então levou os governos de Cavaco Silva a aplicar, em particular no ensino superior, as estritas leis do mercado. A crise no ensino superior está agora à vista. As consequências práticas na educação pré-escolar e nos ensinos básico e secundário já se vêm mas são mais visíveis daqui a cinco ou dez anos. É o tempo de o trabalho docente ser substituído pela ocupação e emprego docente.

A pressa em permitir o desenvolvimento do negócio do ensino privado levou à desregulamentação e à total ausência de inspecção. Foi tudo permitido. O tradicional oportunismo português completou o quadro. Surgiram botecos educativos por todo o lado. A aprendizagem foi substituída pelo folclore das praxes académicas (1).A par dos «turbo-professores» foi-se consolidando um «corpo docente» formado ? muitas vezes ? pelos candidatos sem acesso à docência no ensino básico e secundário públicos. No ensino privado a desregulamentação e a sobrevivência de curto prazo levou ainda a subverter as próprias regras do mercado. A oferta determinou a procura. Cursos baratos e fáceis de completar. O privilégio da via ensino associada à promessa de emprego (2). Cursos pouco exigentes, de pouco investimento, adequados a uma população impreparada para a frequência do ensino superior. Escolha dos cursos sem nenhuma preocupação com o mercado de trabalho, a investigação e o desenvolvimento científico e tecnológico, mas sim determinada pelo marketing das escolas e mesmo pelas especializações deste ou daquele docente.

Portugal oferece hoje uma panóplia de cursos superiores, com conteúdos e nomes que não lembra ao diabo. No nosso ensino superior ? não só no privado mas também no público ?a par da imaginação corre a falta de vergonha, a irresponsabilidade e muito oportunismo. Custa dizer isto, mas tem de ser dito. A oferta de cursos já ronda cerca de um milhar (3). A maior parte chamados de banda estreita, ou de especialização, num claro desajuste e contradição com o sentido mais global do saber actual, da aprendizagem e da investigação.

Argumentarão alguns que não se trata de irresponsabilidade e oportunismo mas de inovação. Dirão que perante a necessidade de vender do ensino privado o ensino público sentiu a necessidade de inovar. Só que a inovação não se confunde com a necessidade de adequar a oferta de formação aos saberes dos nossos amigos e amigas e aos subsídios, mas às necessidades de saber dos nossos alunos e da sociedade concreta em que vivemos. Nem o ensino se pode conceber, sem crime, como competição ou negócio.

Mas tudo isto ocorre e escorre com bonomia e tranquilidade porque interessa não só aos que vão fazendo pela vida mas sobretudo ao Estado. Durante o período de governo cavaquista o exuberante crescimento do ensino superior privado foi um poderoso tranquilizante para o governo. Os amigos interessados no negócio agradeceram. Os pais e os jovens ficaram felizes com a entrada no ensino superior. O sector público pode respirar de alívio deixando de estar sob pressão. O Orçamento do Estado viu-se aliviado. Foi esta tranquilidade que o governo socialista herdou e ele e as oposições puderam entreter-se com o magno problema do "não pagamos" ? as propinas.

Só que, passado o ciclo da procura de ingresso no superior, preenchidos os lugares de emprego que o Estado pode oferecer, a crise está aí a merecer reflexão profunda. Quer do lado da formação quer do lado do emprego.

No que nos diz mais directamente respeito ? o ensino ? é urgente parar o crime. É de crime que se trata. E o crime não é apenas o que não se ensina e o que se ensina nos cursos de formação inicial de educadores e professores, mas também o que se passa na formação agora chamada contínua. É necessário parar a irresponsabilidade. É preciso repensar com seriedade a formação dos docentes e as condições de ingresso na profissão. Não repensar a formação inicial e as exigências e formas de ingresso na profissão, repito, é irresponsabilidade e crime. O presente já o exige, mas o futuro ainda mais.

O sistema de ensino é global. Os diferentes sectores que o formam são comunicantes. Influenciam-se uns aos outros. Têm um destino comum. Nenhum tem o direito de sacudir responsabilidades e de só as atribuir aos outros. Mas no que respeita à formação de professores há uma responsabilidade acrescida dos que os "formam" e certificam como capazes de ensinar e aprender. Não se pode permitir que ingressem em cursos superiores vocacionados para o ensino ? seja no ensino público seja no privado ? alunos que não dominam o Português falado e escrito. Não é possível admitir que ingressem em cursos superiores vocacionados para o ensino alunos com classificações de acesso em provas especificas de zero, um, dois ou três valores. Repito que na minha perspectiva não estamos só perante actos de irresponsabilidade das escolas e do governo mas perante um crime público.

Calar e navegar à vista como faz o governo pode ser cómodo. Berrar pode dar um grande jeito à oposição e aos sindicatos. Mas há problemas que pelas implicações que têm para as pessoas e para as sociedades que não se compaginam nem com o silêncio e a inacção, nem com a gritaria. A formação de educadores e professores e o seu ingresso na profissão docente são um deles. É ridículo reclamar apenas mais emprego quando se reclama por um ensino de qualidade. O ensino de qualidade exige alta qualidade na formação inicial e contínua dos educadores e professores e rigor na entrada e no exercício da profissão. Não o entender é pactuar com o apodrecimento do sistema e da profissão docente. Com optimismo podemos supor que ninguém quer isso.

José Paulo Serralheiro

(1) É significativo que a praxe já tenha chegado a muitos estabelecimentos da educação pré-escolar. O negócio aguça o jeito para o disfarce e para a farsa.

(2) Um pouco como a velha história popular portuguesa que diz ter Deus feito um homem com defeito e atirando-o para o lado foi dizendo: ? vai para aí meu sacana que se não servires para polícia serves para guarda republicana.

(3) Lembre-se, comparando território, população e desenvolvimento, que a Holanda oferece à sua população cerca de 250 cursos superiores.


  
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Edição:

N.º 94
Ano 9, Setembro 2000

Autoria:

José Paulo Serralheiro
Professor e Jornalista. Director do Jornal a Página da Educação.
José Paulo Serralheiro
Professor e Jornalista. Director do Jornal a Página da Educação.

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