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Eduardo Nascimento ou A Memória Algarvia de Infância

No imaginário da infância cabe tudo o que a memória do tempo não esqueceu e os anos não apagaram pela estrada larga e tão breve por onde a vida se perde e se ganha: cabe tudo e sempre o mais que se queira a esse tudo acrescentar, porque os olhos lêem o passado pelas linhas mais estreitas ou insondáveis desse imaginário e o que foi de ontem se levanta ainda na força e no sentido de o tempo se poder recuperar ou reinventar. Por isso, mergulhar na infância e trazer à superfície o que sobra e quase permanece imaculado, o que se perdeu e de súbito se recupera e relembra, na avalancha de imagens e na força das vozes de outrora que nos chegam, é uma forma de exorcismo que faz quem, pelas veredas e caminhos de outras paisagens, deseja retomar essa viagem pelo tempo que inevitavelmente morreu, não é de hoje, mas se revisita ainda por tortuosos "passes de mágica", nos acordes de um harmónio ou no cheio das estevas, porque não é inocentemente que se faz essa descida aos infernos e da infância se recorda o que nela mora e para sempre aí ficou marcado.
Sabemos isso sempre que a esse mundo se regressa pelos fios quase inenarráveis da memória, quando o tempo nos desperta e, como roda gigante no estranho poço da vida e da morte, nos faz uma e outra vez subir e descer pelas mesmas escadas de outros mecanismos psicológicos que se erguem ou perpassam na vida toda reconstruída de palavras, sons e imagens, emoções e sentimentos ou pessoas que já partiram e andam ainda a nosso lado, nesta quase "epopeia" de a vida só fazer sentido para quem nela navega por outras partes e sabe que pela memória a presença do passado se reaviva e ganha outra dimensão no acto natural de tudo se contar e lembrar.
Ora, esta narrativa de Eduardo Nascimento, expressivamente intitulada "O Fole do meu Avô Jacinto", recupera um tempo algarvio que quase foi esquecido, mas não para quem o viveu e traz dentro de si como matéria viva de um passado não esquecido, e não está assim tão perdido, apesar do surto de desenvolvimento do Algarve nos últimos trinta ou quarenta anos (e por isso vale ainda a pena ler as páginas comovidas de Teixeira-Gomes, de Raul Brandão ou de Manuel da Fonseca para se conhecer ou relembrar um outro Algarve), porque os acordeões dos avós Jacintos continuam a fazer-se ouvir de celeiro em celeiro pelos montes escondidos da serra, ou ainda na presença de uma Cacela Velha que transporta consigo outras memórias. E é de tudo isso que se tece todo o emaranhado descritivo desta narrativa, marcada por uma candura e uma forte emotividade poetizada em momentos, imagens ou lugares que foram de peregrinação e são hoje "motivos" de uma saudade que se não perde no que narra, mas recupera essa memória do avô Jacinto que "despejava música nas almas e nos corpos das moçoilas e mancebos" ou que em dias de festa "levava notícias de outras paragens e outras danças". E esta memória comovida e sincera por um avô Jacinto que já não vive, nem pode escutar as palavras do seu neto, e sobretudo pelo claro sentido das várias anotações sobre os lugares da infância (Ria Formosa, Tavira, Castro Marim e outras saudades),Eduardo Nascimento traça, numa prosa poetizada por vezes extremamente conseguida, esse caminho de muitas bifurcações que pede à infância para lhe desvendar os sinais e as sombras que se espalharam pelos rios e lugares do seu imaginário de todo não esquecido. E por esse mar de palavras, muitas são as referências às paisagens, cheiros, usos e hábitos que povoaram a vida do avô Jacinto, que nunca por nunca se queixou do peso do fole que levou por todos os recantos da sua alegria.
Por último, importa dizer que neste seu pessoal modo de reinventar o tempo de infância algarvia, perdido que anda por Lisboa há muitos anos, Eduardo Nascimento não deixou de ser, um pouco à maneira de Bernardim, esse "menino e moço" cândido e sincero que, na confirmada razão de serem outras as longes terras por onde os mesmos passos se perdem ou são levados, sabe servir-se da escrita como forma de reinventar esse sonho na emotividade das palavras necessárias e na calada convicção de que "tudo se repete / tudo é diferente". Eis, pois, um belo livro que mergulha na infância (não, não é um livro para a infância) e se apresenta valorizada nesta "edição de autor" com uma capa e sugestivas ilustrações de Alfredo Martins, que em 1998 obteve o "Prémio Nacional de Ilustração".

Serafim Ferreira

Eduardo Nascimento
O FOLE DO MEU AVÔ JACINTO
Ilustrações de Alfredo Martins
Ed.de Autor / Amadora, 2000


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 93
Ano 9, Julho 2000

Autoria:

Serafim Ferreira
Escritor e Crítico Literário, Lisboa. Colaborador do Jornal A Página da Educação.
Serafim Ferreira
Escritor e Crítico Literário, Lisboa. Colaborador do Jornal A Página da Educação.

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