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Nascer, Crescer, Morrer. A Persona é Transição.

Para o nosso primeiro neto,
Tomás Mauro van Emden Iturra

Transição é um conceito trabalhado por nós em Portugal, na sequência dum seminário da UNESCO, entre Paris e Lisboa. Definimos o conceito tal e qual é referido no livro publicado em 1991 e que consta na bibliografia deste texto. Era um conceito sobre o social. De como dentro de interacção, havia rasgos de comportamento estabelecidos a permanecerem, ideias a mudarem, gerações de diferente saber a conviverem, contexto social de memória larga, contexto social de memória curta, contexto social em permanente mudança. Uma sistemática contradição do que as pessoas pensam, dizem e fazem. Contradição a dinamizar o crescer no labirinto da história.

Um conceito sobre o social não pode ser pensado fora do ser humano, como parece evidente. Mas, de qual ser humano e dentro de que posicionamento? É parte da questão da pessoa individual? Dos indivíduos em interacção? De grupos? Porquê pensar entre indivíduo e grupo? A pessoa parece não poder ficar longe de outras pessoas. Já o Direito Romano das Institutio Justinani ou o Código de Direito Romano compilado por Justiniano I em 553 D.C., Imperador de Roma, definia persona como todo o ser humano capaz de ter direitos e deveres para exercer perante os outros, ou com os outros, conforme a sua capacidade, idade e condição. Lembro-me ter arguido no meu capítulo do livro invocado antes, que toda a sociedade era um sistema em permanente interacção para a mudança. Mudança em resultado da persona estar a passar entre diversos ciclos de vida. Ciclos de vida? Cronologia? O quê é que eu entendia? Por ciclo de vida, eu entendia os ritos de passagem à Van Gennep (1909), a passagem duma forma de viver para outra, processos diferentes em toda a cultura. Como Frazer tinha ensinado ao analisar mitos em 1890. Como Goody me ensinara directamente e escrevera a seguir de forma muito esclarecida em 1995. Ou Maurice Godelier debatera connosco supra citado seminário e deixara por escrito em 1981 e 1984. E todos nós temos desenvolvido nos nossos trabalhos ao longo dos derradeiros 20 anos. Persona acabava por ser uma entidade em transição, em mudança permanente. Rasgos do ser ficam a serem desenvolvidos ao longo da vida, rasgos do ser a nascerem nesse itinerário histórico em interacção.

Será que vou dar uma aula sobre transição? Será que o estimado leitor deve sofrer as minhas conceições sobre o social, sobre essa heterogeneidade que é a vida? Ou será que o leitor vai apreciar apenas estas minhas meditações sobre a vida provocadas pelo domingo à tarde, pelas minhas ideias sobre como ampliar, fazer mais largo o aparelho conceptual para entender o contexto epistemológico das crianças. Um contexto em mobilidade permanente, processo pelo qual a criança passa sem reparar, ao longo do tempo. Sem reparar que a vida tem feitos de começo, meio e fim. Porque, enquanto vive, não entende que está a mudar sempre. Até chegar o dia da experiência fá-lo parar, meditar e pensar: mudança, qual o conteúdo?

1.Nascer

É a primeira mudança de todo o ser humano. É a passagem a ser pessoa autónoma de repente. Sem se ter a capacidade de entender, sem se ter a força de confrontar a separação da vida do corpo da mãe que o chocava, para passar a ser um corpo ainda a precisar da colaboração dos seus adultos par se criar. Para se desenvolver. Criança que chora e ri conforme os estímulos sensitivos mais elementares num ser que, às tantas, pode filosofar. Ou ter imaginário, ou fantasia. Nascer é o grito de liberdade duma entidade a lançar o seu primeiro berro mal entra o ar aos seus pulmões, mal fica a sentir o ar que penetra pelo seu corpo. Um sair da piscina aquecida do útero materno para entrar no ambiente mais amplo do lar. Eis a necessidade de levar o pequeno ser ao peito da mãe para sentir ainda esse calor que o envolveu durante nove meses. Sítio desde onde ouvia os estímulos externos de paz ou da raiva que entravam ao seu corpo pelo sangue da mãe ou ouvia pelas vibrações da água que o envolvia. Nascimento a desmamar da nicotina, de sabores de comidas que ao corpo entravam pelo corpo da mãe; ou, do som da música da voz do pai, dum Mozart às tantas ouvido, duma calma especial ou dum exercício feito pelo corpo que o transportava. Nove meses de entender, através da matéria corporal, as ideias da vida. A ficarem numa memória ainda não desenvolvida. Ou, melhor dizendo, ainda a ser formada. Porque nascer é trazer já a história do casal, a história do lar, a história dos ancestrais contida na experiência cuidada da casa. Ou, não cuidada para ele. No entanto, memória. O grupo social vê o neo nato como um bebé, sem tentar sentir que, perante os adultos todos, está presente um indivíduo a se comunicar com os seus signos retirados do saber incutido no ventre materno, e através do ventre materno, pela história que lhe coube viver quando não parecia actor da mesma. Transição em nascer, é participar na interacção social enquanto se acumulam dados para, mais tarde, agir na vida conforme os objectivos apreendidos, desenhados, definidos, imaginados, configurados conforme o contexto no qual se vive. Ideia rara, já entendida por Justiniano, esse invocado Imperador. Uma lei do Século V a entender o ser persona como uma realidade dinamizadora da inspecção feita pelo bebé das suas mãos, dos seus olhos, dos seus intestinos. Até ao ponto de se ter pensado que era persona apenas o novo ser capaz de olhar para os quatro cantos do quarto. Nascer é continuar a história aprendida a partir da comunicação sentida dentro dum outro corpo, para desenvolver depois na interacção individual autónoma, culturalmente escolhida. Um código genético no qual os biólogos nos fazem pensar. Desde faz tempo. Sabida a sua existência, faz pouco. E sabida por poucos. Mas, já entendida pelos redactores do primeiro código legal a governar o ocidente nosso. Descoberta para ser espalhada rapidamente, a correr, dentro do grupo social, para se saber que todo o bebé é uma persona que sabe. Saber cuidado e cultivado como memória, pelos denominados nativos de culturas não ocidentais, com experiência oral do gerir dos mais novos. Bem diz Maurice Godelier, em 1981, como os Baruya isolam as mulheres grávidas num sítio diferente e calmo. Bem vejo como a lei do império do capital permite apenas um mês de licença pré-natal e mais um mês de post-natal...apenas...Bem vejo aos meus Picunche da América do Sul olhar com todo respeito a mulher grávida, e lhe proporcionar um canto de paz, sem mais deveres que os que ela própria queira se impor. Bem velhas são as críticas a esta situação feita nos romances de Charles Dickens...e os costume rurais portugueses e galegos para tratar a grávida com essa mesma palavra: grave, situação de cuidado. Porquê?

2. Crescer

Nasce e cresce. Desenvolve, sem saber, o código genético da sua memória, do seu livre arbítrio, orientado pelo saber da sua cultura.. Sem saber que o que está a aprender já o percebia. Como andar, comer, rir, escapar...perante imagens gravadas com antecedência na sua memória individual. Porquê o comentário típico dos adultos, ao dizerem: ri como a mãe, tem as cores do pai, foge como o seu avô fugia em pequeno, ri perante as mesmas tolices que o seu tio mais velho? Comentário de família feito em torno de uma teoria da qual ainda sabe-se pouco. Ainda menos, tecida com o saber da experiência do grupo. O crescimento não é apenas o nutrir, ensinar, orientar, dinamizar. O crescimento é assimilar o afazer dos pequenos ao afazer dos adultos. Ou, comparar essas tarefas com as tarefas dos adultos. Como esse avô do qual falo num outro texto (1999d), a ensinar gentileza a uma criança por meio do fazer repetir gestos dum homem adulto: Menino, faça um cavalheiro, e o menino calava, cruzava as pernas e ficava a olhar à distância, sério, de olhos fixos, calmo e senhor de si próprio. Talvez seja a primeira vez que eu próprio me tenha apercebido do saber envolvido no crescimento da criança: um saber sabido, evidenciado enquanto lhe é transferido o saber social que a criança pensa, mede, calibra e aceita ou não. Chamam teima ao não querer fazer. Chamam manha ao teimar em fazer como a criança quer. Chamam mal comportamento à autonomia do agir, ao isolamento procurado pelos mais novos, à resistência a querer obedecer o que não gosta de fazer. Os adultos não sabem que a criança tem pensamento. E que a dita teima é apenas o conferir entre o que sabe e o que lhe é transmitido como ciência ou fazer social, saber social. Bem diz Paulo Raposo nos seus textos (1991,1996,1998), que os ateliers que faz com crianças, retiram das mesmas um saber aprendido de não sabe onde, antes de irem à escola ou serem ensinados no lar, na rua ou na catequeses. Um Paulo Raposo que deverá entender agora que esse saber vem incutido desde o primeiro dia de existência e é apenas desenvolvido por meio dos estímulos que os adultos lhes dão. Em actividades performativas ou rituais criadas pelos mais novos ao longo das brincadeiras da vida. Essa que Filipe Reis estudou (1991), quando prova que a brincadeira é uma forma de calcular o sim e o não da opção que todo ser humano faz na vida adulta. Uma ideia que já tínhamos estudado em equipa nos Tempos Livres de Vila Ruiva e relatada por nós em vários textos a teorizar o saber que a criança tem porque traz consigo.

Quem me dera que o Ministério da Educação dedica-se tempo especial a essa epistemologia para ser incorporada nos estudos das escolas. Mas, quem me dera que os adultos soubessem que a criança é já sabida na sua transição do corpo da mãe à vida adulta. Vida orientada pelo saber intra-uterino. Vida orientada pelo desenvolver da memória do código genético perante estímulos que andamos agora a aprender e que muitas mães tinham já entendido para elaborar a educação dos seus filhos, bem ao contrário da vontade dos pais. Um saber sabido é o desenvolvido em palavras e conceitos no crescimento das crianças. Como tentei mostrar num livro meu em 1998. Queira o leitor pensar no assunto. Eu sou capaz de me colocar a pergunta por ter visto uma mãe tratar os filhos tal e qual a sua capacidade de apreciar a vida. Persona em transição entre o saber incutido nos genes e o saber social, desenvolvido na interacção.

3. Morrer

O acto final duma vida. O fecho da transição. Quando a memória se fecha e os olhos também. Quando o código genético descansa. Esse código genético que trazia inscrito o dia e a hora na qual íamos parar de viver e passar a denominada eternidade. Um facto contra o qual nos rebelamos de tal maneira, que não queremos dizer a palavra morte. Há muitas outras usadas em várias línguas que retiram o peso do fim: fechou, passou, ficou a dormir, o sono eterno, foi-se embora. Ou, com profunda tristeza: deixou-me, traiu-me, me abandonou. A morte acompanha o início da vida. O começo da análise da vida que podemos fazer sobre uma persona. De medir quanto é que sabia e quanto é que tinha entregue aos outros o recebido dos outros, quais as sua maravilhas. Ou as suas tolices. Bem é dito algures que não há morto mau. E, de facto, se pensarmos com calma, todo o morto é bom. Ficam connosco os sentimentos que a essa pessoa nos unia. Um acto de cena final para o qual não estamos nada preparados. Nem se fala do derradeiro acto da vida, tenta-se mais bem o ocultar. Disfarçar com rituais e com lembranças das excelências espalhadas no contexto social da história que essa persona coube-lhe viver. Ou, soube fabricar. Tanto e de tal maneira, que temos criado uma outra vida para essa persona. Manipulada de duas maneiras: as lembranças da memória social, as aventuras dentro da vida eterna. Ou, a saudade de pensar que já não tem que trabalhar, que não tem que sofrer no seu corpo a dor que o leva a morte. Como diz essa mulher Picunche que me falava da morte, essa etnia que almoça aos domingos no cemitério, na campa do pater familias do grupo familiar: a morte é uma dor tão forte, que nos mata. Redundância ou explicação? O que é que interessa? Interessa entender como o grupo social acaba por criar um asilo para esta etapa do acto final. A vida está cheia de prevenção à morte, a vida é uma luta para viver a vida calma, em paz e serena. A vida é uma ditadura que pretende retirar todos os elementos que fazem mal ao corpo. Excepto um, o mais importante: a desigualdade social e as formas etnocêntricas de a criar: que sistematiza hierarquias que permitem, aos menos, viver bem, e aos mais, viver em desamparo.

O desamparo é a morte, essa perda que deixa um vazio impossível de substituir, mas passível de alimentar com o desenvolver de outras relações ou de outras actividades. O desamparo é causado pela morte duma persona a nós ligada. Ensino omitido entre os seres humanos que causam duelo e luto. Tristeza e meditação. E cria uma transição do corpo à alma, como já fiz referência num outro texto meu em 1997. A derradeira transição social é passar de corpo a espirito. Saber sabido e ocultado pelo desespero de não poder controlar o seu próprio fim. Da mesma maneira que não se pode controlar o próprio princípio ou começo da vida. Mais uma contradição dentro da qual vivemos: somos feitos e somos enterrados, mas o crescimento é dito ser autónomo e de auto responsabilidade. A transição está aí: no entendimento de sermos seres nascidos sabidos e morrermos na mais completa ignorância do que virá a acontecer depois de acabada a vida pessoal. A vossa morte, é comigo. A minha, é convosco.

E é neste ponto que deixo o leitor. O tema não é leve. A proposta que lanço neste texto é para ser comentada. Genealogia, genética, cultura. Nascer, crescer, morrer. Começar, mobilizar, fechar. Biologia e Antropologia. Cultura e natureza. Sermos pais de filhos que nos herdam, no saber como nos bens. Queiramos ou não. Como tenho esboçado nos artigos prévios do nosso jornal, em Maio e Junho. Solicitando, também, comentários. Para sermos persona em debate. Donde, sermos transição.

Raúl Iturra
Instituto Superior de Ciências do Trabalho e da Empresa (ISCTE) Lisboa

Bibliografia.

  • Fazer, James Sir, (1890) 1994: The golden bough. A study in magic and religion. Papermack, London.
  • Godelier, Maurice (org), 1991: Transitions et subordinations au capitalisme. MSH-CUP, Paris.
  • 1981: La production des grandes-hommes, Fayard, Paris.
  • 1984: Lidéel et le materiel. Pensée, économies, sociétés. Fayard, Paris.
  • Goody, Jack, 1995; Representations and contradictions. Ambivalence towards images, theatre, fiction, relics and sexuality. Blackwell Publishers, London.
  • Iturra, Raúl, 1991: Changement et continuité: la paysannerie en transition dans un paroisse galicienne, in M.Godelier, (org) Transitions et subordinations au capitalisme, MSH-CUP, Paris.
  • 1997: O imaginário das crianças. Os silêncios da cultura oral. Fim de Século, Lisboa.
  • 1998: Como era quando não era o que sou. O crescimento das crianças. Profedições, Porto.
  • 1999: Meu pequeno, faça um cavalheiro, in Brincadeiras da minha meninice, Associação de Jogos Tradicionais da Guarda, Guarda.
  • Justiniano I: in Hunter, Wiliam, 1909, Roman Law , Sweet and Maxwell Ltd, London.
  • Reis, Filipe, 1991: Educação, ensino e crescimento. Escher, Lisboa
  • Raposo, Paulo, 1991: Corpos, arados e romarias. Escher,. Lisboa
  • 1996: Diálogo com os santos: performance, dramaturgia e aprensizagem ritual, in O saber das crianças, R. Iturra (org), I.C.E., Setúbal.
  • 1998: O Auto da Floripes: <cultura popular>, etnógrafos, intelectuais e artistas, in Etnográfica, Revista do Centro de Estudos de Antropologia Social, Vol.II, N.2.
  • Van Gannep, Arnold, (1909) 1981: Les rites de passage. Picard, Paris.

  
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Edição:

N.º 93
Ano 9, Julho 2000

Autoria:

Raúl Iturra
Instituto Superior das Ciências do Trabalho e da Empresa, Lisboa
Raúl Iturra
Instituto Superior das Ciências do Trabalho e da Empresa, Lisboa

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