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Alunos da Faculdade de Arquitectura "Desafiam" Alternativas Ecológicas para o Porto 2001

O que se propõe a seguir não é apenas uma mudança na cidade. É uma mudança mais profunda, no interior do próprio cidadão da cidade e - porque não dizê-lo - do mundo. "Ser utópico é a maneira mais consistente de ser realista no final do século", pode ler-se no cabeçalho de um dos treze projectos apresentados pelos alunos finalistas da faculdade de arquitectura do Porto, que pretendem ser uma resposta ao "formalismo" que envolve a actual renovação urbana da cidade, capital europeia da cultura em 2001. Em suma, uma reflexão crítica sobre o modelo de cidade que se pretende construir.
"Não quer dizer que algumas destas propostas não tenham um fundo utópico, mas têm valor no sentido em que são a tradução de um desejo", diz Abel Nunes, um dos elementos do grupo que redesenhou a ligação entre as duas margens do douro, através do projecto "Duas cidades, duas margens". A tal frase da utopia é deles. E o Abel Nunes não desarma: "para se transformar é necessário, antes de tudo, que haja uma ideia; quer seja para uma tranformação do espaço, quer seja das pessoas".
Uma das propostas mais interessantes e inovadoras constantes neste último trabalho é a própria transformação do conceito de casa: a "casa autónoma", que funcionaria em regime de auto-sustentabilidade, utilizando os elementos naturais, como o sol, o vento e o próprio solo, como de um mesmo sistema se tratasse. A água para utilizações domésticas proviria da recolha das águas pluviais, através da inclinaçãodo telhado, e de um sistema de drenagem que conduziria a água depurada até um reservatório. Células fotoeléctricas garantiriam, pelo menos em parte, o fornecimento de energia eléctrica ao edifício.
"Nesta fase", diz Luís Faria - um arquitecto já formado e cuja tese de doutoramento, na Universidade de Salamanca, versou exactamente uma ligação mais estreita entre meio ambiente e arquitectura -, "é mais importante os alunos lançarem problemas do que avançarem soluções práticas definitivas". E não tem dúvidas: "Ser utópico, neste caso, é bom e pertinente".
A sociedade Porto 2001, na opinião deste jovem arquitecto, está a dar o aval a "projectos de fachada", quando podia estar a servir para sensibilizar a opinião pública. Tal como se fez para a Exposição Mundial de Hannover, que se realizará este ano. Aliás, o certame desta cidade alemã foi um dos pontos de análise para as propostas agora apresentadas, tal como foram os exemplos da região biológica de Toronto, no Canadá, a cidade solar de Linz-Pichling, na Áustria, ou as experiências do movimento de eco-aldeias na Europa.
Experiências que parecem ter inspirado directamente um dos projectos mais ousados deste conjunto de treze ideias, que passa pelo aproveitamento do anel viário interior da cidade - a Via de Cintura de Interna - como canal de irrigação dos jardins da cidade, e dos espaços desaproveitados em torno dos nós de acesso para construção de pequenas centrais de reconversão de detritos.
A principal novidade estaria na forma como a água seria tratada, através de bio-etars, ou seja, espaços verdes que funcionam como estações de tratamento natural. A depuração das águas seria feita pelo processo de lagunagem, que apresenta vantagens incontestáveis relativamente às etars convencionais: menor consumo de energia e não utilização de produtos químicos, as chamadas "tecnologias vivas".
"Aproveitar todos os recursos energéticos renováveis oferecidos pela natureza não é uma utopia, é verdadeiramente possível", pode ler-se no painel que acompanha este projecto.
Outros projectos não são assim tão utópicos, como é o caso dos pequenos carros movidos a energia eléctrica para deslocação no interior da cidade, distribuídos através de parques periféricos onde as pessoas pudessem deixar os carros movidos a carburante, por exemplo, como é o caso da proposta apresentada pelo Pedro Jorge.
"As pessoas estão muito "agarradas" ao automóvel e recusam a ideia de se deslocar em transporte público. Nessa medida, esta podia ser uma boa alternativa. Não se trata de apelar ao espírito ecológico das pessoas porque elas ainda não estão consciencializadas para isso. Tem de se atraír as pessoas do ponto de vista financeiro, mostrando-lhes que poupariam".

Transformar o tecido social através da arquitectura

Estas e outras propostas foram desenvolvidas na cadeira de História da Arquitectura Contemporânea, orientada por Jacinto Rodrigues, professor naquela faculdade e autor de recentes artigos na Página, o último dos quais sobre um tema que ainda parece estar confinado a uma perspectiva quase "esotérica": a concepção de cidade como uma realidade sistémica e planetária, ou seja, a o planeamento urbano entendido como um "relacionamento entre natureza, civilização e cultura", nas palavras de Rodrigues.
"Os trabalhos previstos para o Porto 2001 estão todos muito bem feitos do ponto de vista profissional, mas não trazem ideias novas à cidade", afirma este professor. "Perdeu-se uma excelente ocasião de promover uma arquitectura mais sustentada, menos virada para o objecto e vocacionada para as pessoas", diz ainda.
Jacinto Rodrigues não rejeita a responsabilidade da escola neste processo: "as faculdades de arquitectura continuam a formar arquitectos que cumprem o esquema tradicional. É por isso que muitos alunos assumem uma visão muito superficial do papel da ecologia nessa transformação, mas ela tem de ser entendida como um novo processo civilizacional, uma nova forma de conceber a sociedade".
A maioria das ideias, reconhece, precisariam de um estudo técnico mais aprofundado, na medida em que os alunos não têm qualquer formação na área ambiental. A solução está na cooperação com as outras áreas do saber, como a biologia, a botânica ou a física e a química. "Mas para isso é necessário que a profissão deixe de ter o carácter corporativo que a caracteriza", refere Rodrigues.
Muitos são os exemplos na União Europeia onde o planeamento urbano não dispensa a conjungação com os elementos naturais do meio. A Suécia, por exemplo, está muito evoluída no que diz respeito ao tratamento da água. Mesmo dentro das cidades, como em Estocolmo, pode-se nadar e pescar em pleno centro urbano. E o Porto é um exemplo. Também aqui Em plena cidade correm ribeiros escondidos, desaproveitados, que não servem para mais do que transportar esgotos para o rio.
"O que se pretende incutir é uma espécie de revolução social, mais do que arquitectónica. Parece-me que arquitectura é o que dará forma a uma nova de ver o planeta", afirma, por seu turno, José Queiroz, também ele ex-aluno de Jacinto Rodrigues, e profissional no activo. "A arquitectura tem de deixar de ser uma disciplina isolada e passar a constituir-se como uma formação interdisciplinar. Construir "caixas" para habitação é algo que está ultrapassado".
As atitudes práticas neste sentido é que irão ser mais difíceis de concretizar, porque não partem dos arquitectos individualmente. "Infelizmente, nas universidades não se preparam arquitectos de tenham uma vertente pluridisciplinar e isso reflecte-se depois nas necessidades do mercado. É muito difícil convencer um promotor das vantagens desta perspectiva ecológica da arquitectura, até porque o mercado imobiliário arrisca muito pouco em soluções inovadoras, inclusivamente o Estado, que à partida teria mais responsabilidades", reitera Luís Faria. "Não é a qualidade dos projectos apresentados para o Porto 2001 que está em causa. É o problema de aparecerem como remates parcelares de um processo que se devia tratar a nível de raiz", sublinha.
"Para haver transformações é necessário que os políticos se interessem por elas e se promovam mudanças estruturais, de fundo. Mas eu não acredito que o Estado se reconverta de um dia para outro, é necessário que as pessoas o exijam e a sensibilização tem aqui um papel fundamental. É nesse sentido que os arquitectos têm uma grande quota parte de responsabilidade", afirma José Queiroz.
E às vezes são os pequenos gestos que induzem à transformação. Por exemplo: se 100 mil pessoas eliminassem o seu nome das listas de publicidade directa, salvavam-se cerca de 150 mil árvores por ano. Do mesmo modo, se fossem recicladas anualmente 35 mil toneladas de papel poupava-se o abate de 700 mil árvores.
"Ter uma cidade cada vez mais poluída e energetívora é que não pode ser. É uma utopia de morte", complementa Jacinto Rodrigues.

Ricardo Jorge Costa


  
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Edição:

N.º 93
Ano 9, Julho 2000

Autoria:

Ricardo Jorge Costa
Jornalista do Jornal A Página da Educação
Ricardo Jorge Costa
Jornalista do Jornal A Página da Educação

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