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Provas de Aferição ou a "Revolução de Veludo"

Que me desculpem os leitores se insisto na temática da avaliação. Mas gostaria, a esse propósito, de pôr em relevo alguns pormenores que, sobretudo na modalidade de avaliação aferida, traduzem o que se pode considerar uma verdadeira "revolução de veludo" no nosso sistema de ensino, cujo significado importa reflectir.
Os meus leitores mais velhos lembrar-se-ão do autêntico acto sacrificial que representavam os exames, a começar pelos da antiga 4ªa classe, realizados na sede do concelho, à distância humana e física de tudo o que pudesse significar um ponto de apoio ou um mínimo gesto de confiança que viesse falsear a verdade do saber depositada no mais profundo da mente do aluno.
Nada mais diametralmente oposto ao que se passa hoje. Num edital do Ministério da Educação, que os jornais do dia 20 de Maio passado publicaram sob o título "Provas de aferição do 4º ano de escolaridade", o redactor afadigou-se, num exercício de desdramatização exemplar, em explicar aos pais e encarregados de educação e opinião pública em geral em que consistiam verdadeiramente as provas em referência. Antes de mais, são provas só em Língua Portuguesa e Matemática. Depois, "não têm qualquer influência na avaliação e na transição dos alunos", tanto que "não contêm, sequer, a identificação dos alunos" e destinam-se, apenas, a permitir "recolher informação muito útil sobre as aprendizagens realizadas pelo conjunto dos alunos do 4º ano de escolaridade em cada escola e são, naturalmente, muito importantes para as escolas, para os professores e para o Ministério da Educação".
Este esforço informativo é, porém, guiado por uma preocupação pedagógica que vai directa ao coração dos pais no sentido de que transmitam aos filhos "a serenidade necessária, informando-os da real natureza das provas de aferição", não vão eles "acreditar que se trata de exames semelhantes aos que realizam os seus colegas mais velhos." Não se sabe, exactamente, o que se pretende com este pedido de transmissão da "serenidade necessária", mas tudo leva a crer que o Ministério teme que os miúdos entrem em pânico só de pensar que lhes pode acontecer o mesmo que "aos seus colegas mais velhos". Nesta perspectiva, seria de alguma forma intolerável para o Ministério que os pais não poupassem os seus filhos, por falta de informação, a um sofrimento inútil, pelo menos enquanto o podem fazer, isto é, nesta fase em que não são eles que estão a ser avaliados. O Ministério é claramente sensível ao apelo do poeta "Mas as crianças, Senhor, porque lhes dais tanta dor, porque padecem assim?..."
Sem querer complexificar em excesso o significado que comporta esta mensagem do Ministério, pode reconhecer-se que lhe subjaz uma intenção liminar de responsabilizar os pais pelos efeitos das provas sobre o estado psicológico dos seus filhos, supondo-se que todos os pais estão em condições de o fazer, até porque, quando não o estejam, dispõem dos professores para o efeito, como também se refere no Edital.
Ignora-se qual tenha sido o comportamento dos pais em todo este processo, mas eu, por mim, teria alguma dificuldade em explicar ao meu filho ou à minha filha toda esta história de provas anónimas, ainda por cima só em Português e Matemática É claro que iria usar, o mais fielmente possível, a argumentação do Ministério: - é muito importante o que tu faças "para as escolas, para os professores e para o Ministério da Educação".
E porque não para mim? ? perguntaria ele ou ela, que as crianças são sempre muito perguntadoras...
- Para ti, ainda não, porque isso iria fazer-te sofrer. E tu ainda és muito novinho para sofrer. Isso é só para os teus colegas mais velhos, que, entretanto, se habituaram a sofrer...
- E é isso o que eu tenho que fazer?
- Twenty-two points, plus triple-word-score, plus fifty points for using all my letters. Game's over. I'm outta here.Ó filho, não te preocupes por agora, porque, entretanto, o Ministério já arranjou outras soluções. É para isso que ele faz estas provas aferidas...

Manuel Matos
Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação / Porto


  
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Edição:

N.º 93
Ano 9, Julho 2000

Autoria:

Manuel Matos
FPCE, Univ. do Porto
Manuel Matos
FPCE, Univ. do Porto

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