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Crónica da Professora Sem Ilusões...

Uns consideravam-na presunçosa, outros achavam-na simplesmente antipática. O ar decidido, a que uma imagem cuidada e o vestuário caro imprimiam um toque de arrogância, e a maneira frontal como expunha o que pensava dos outros e das situações que não lhe agradavam, faziam dela uma pessoa que se não era evitada, também não a tornava numa companhia muito popular. Ana Luísa pertencia ao número daqueles que aparentemente pouco se preocupam com a impressão que causam nos outros, sobretudo quando estes, por qualquer razão, não os fascinam ou, muito simplesmente, por serem vistos como gente sujeita a outras preocupações, a outros pulsares e familiarizada com outros ambientes menos sofisticados que o seu.
Face aos miúdos, então, esta atitude tornava-se particularmente ostensiva. Em primeiro lugar, porque para ela esses jovens, até pelo facto de serem alunos, não tinham, nem deveriam ter, as mesmas prerrogativas dos adultos. Em segundo lugar, porque, na sua opinião, muitos desses rapazes e dessas raparigas não tinham o mínimo de condições para frequentarem o Ensino Secundário. Não tinham inteligência suficiente, não tinham famílias que os apoiassem nos estudos, não tinham, finalmente, nas escolas, estruturas de apoio educativo capazes de responder ao elevado número de alunos que manifestavam dificuldades de aprendizagem nas mais diversas disciplinas. O melhor para essa gente seria começar a trabalhar ou então tentar entrar para, o que ela chamava, cursos técnico-profissionais onde pudessem aprender uma profissão. A continuar na escola só adquiriam vícios e perdiam tempo, pois, mais tarde ou mais cedo, iriam acabar por desistir, depois de se terem cansado de reprovar e de dar cabo da paciência aos professores. Havia electricistas, com a quarta classe, que ganhavam tanto ou mais do que ela, licenciada e professora profissionalizada com doze anos de serviço, que, para além das aulas naquela escola, ainda leccionava algumas horas por semana num conhecido externato da cidade.
A doutorite andava a dar cabo deste país, concluía. Uma ilusão que havíamos de pagar caro, que estavámos a pagar caro, por causa da mania de um igualitarismo medíocre que hoje, em Portugal, era defendido de uma forma franca e aberta. Ninguém beneficiava com isso, uns porque não eram capazes, apesar dos discursos demagógicos que nos queriam convencer do contrário, de prosseguir estudos e outros porque eram prejudicados, exactamente, no prosseguimento dos seus estudos por essa intromissão que obrigava, apesar de tudo, a que os níveis de exigência académica baixassem e se instalasse, progressivamente, a tendência para nivelar os alunos por baixo.
Ali na escola havia quem o defendesse. Alguns por inexperiência, como a Helena, e outros, como a Judite, vá lá saber-se porquê. No caso de Helena não se admirava por aí além. Ainda vivia os anos dourados de uma juventude que lhe permitia o estouvamento e lhe justificava a rebeldia. Era uma menina mimada e estava tudo dito. Daí a uns anos logo se veria se continuava a assumir aquela pose de Joana d?Arc, quando quisesse adquirir, para além do duplex numa zona decente da cidade, a casa de férias e pagar as propinas dos filhos num bom colégio privado. No caso de Judite, normalmente tão sensata e discreta, ainda hoje se perguntava o que lhe tinha passado pela cabeça quando, num conselho de turma convocado para discutir um acto de indisciplina grave, decidiu começar a discutir a falta de sentido do Ensino Secundário como justificação para alguns dos comportamentos assumidos pelos alunos. Disse-lhe, na altura, o que tinha para dizer mas sentiu-se de algum modo perturbada com os equívocos e as ilusões que alguns colegas seus alimentavam. É que eram pessoas que, tal como ela, todos os dias entravam numa sala de aula e viam o que ela via, sofriam o que ela sofria. Não eram políticos ou teóricos instalados em gabinetes bafientos, eram professores que sabiam que uma Magda e um Jacinto nunca seriam uma Teresa ou uma Ana. Eram professores que se sentiam mais gratificados por trabalhar com uns do que com outros e que, por isso, não tinham o direito de se iludir e de iludir os outros.
Por muito que a tentassem convencer com os números das estatísticas, nos quais não confiava plenamente, o Ensino Secundário, em Portugal, não podia deixar de ser um nível de ensino selectivo e o momento adequado para que o sistema educativo se começasse a preocupar com uma formação exigente das elites nacionais. Por isso, para ela, era obrigatório haver exames nacionais no fim do 9º ano, a partir dos quais se seleccionasse os alunos que poderiam frequentar os cursos que lhes pudessem proporcionar a continuação dos estudos ou os cursos que favorecessem a aprendizagem de uma profissão. Os primeiros assegurariam a possibilidade de se entrar nas Universidades, os segundos, quando muito, dariam acesso aos Politécnicos. Não havia, contudo, coragem para decidir isto. Os governos tinham medo de perder votos, não aguentavam a pressão dos pedagogos nos púlpitos dos Congressos cada vez mais frequentes, nos cursos de formação contínua de professores ou nas revistas educativas que tinham começado a proliferar como cogumelos depois de uma boa chuvada. Tinham medo também do berreiro dos esquerdistas que se acolitavam nos Sindicatos e que não permitiam que tais medidas fossem tomadas, as quais, ao contrário do que se pretendia fazer crer, beneficiavam mais os alunos, todos os alunos, do que a actual situação de meias tintas em que nos estávamos a atolar.
Em que país do mundo é que a formação das elites e de trabalhadores minimamente qualificados ocorre, até tão tarde, em função dos mesmos programas, das mesmas exigências académicas e nos mesmos espaços escolares ? Como é que se pode iludir o atraso cultural das famílias de onde muitos alunos provêm, a incapacidade educativa dos pais nos dias de hoje e o ambiente de permissividade em que se vive ? Como é que se pode exigir um ensino de qualidade no Secundário quando o Ensino Básico foi transformado numa espécie de Jardim-de-Infância onde tudo vale e pouco se exige, em nome do bem-estar psicológico dos meninos, da necessidade de não destruir a sua auto-estima e da crença que as aprendizagens escolares devem proporcionar prazer aos alunos ?
Por mim podes correr e saltar, minha querida Helena, Físico-Química continuará a ser uma disciplina onde não se fazem favores a ninguém. Quem mostrar que sabe, passa, caso contrário reprova. Proclamara isto na reunião do conselho de turma, convocado para atribuir as notas do 1º período, quando a colega lhe perguntara se havia necessidade de avaliar um aluno, o Renato, com um sete, já que lhe parecia que um oito, porque cumpria as mesmas funções, talvez fosse pedagogicamente mais vantajoso, na medida em que não o incitaria tão abertamente à desistência. Segundo ela, o miúdo não tinha condições financeiras para se meter em explicações, embora fosse um rapaz inteligente e aplicado que necessitava que na escola lhe dessem o máximo de apoio possível. Pobre Helena, sempre a jogar com os sentimentos dos outros, mas sem compreender que uma escola não pode funcionar como uma Santa Casa da Misericórdia nem que os professores têm de ser a Madre Teresa de Calcutá. Sem compreender, afinal, que o aluno estava a ser mais prejudicado do que beneficiado pelo seu paternalismo. Qual a vantagem de o iludir ? Qual a vantagem de adiar o inadiável ? O 12º ano, para alunos como ele, não lhe servia de nada. Não poderia entrar para uma universidade pública porque, provavelmente, não teria notas para isso, nem meios para pagar as propinas numa privada ou para viver deslocado numa outra cidade, caso encontrasse lugar numa Faculdade do interior.
O que a irritava em Helena, e em todos aqueles que defendiam o que esta defendia, era essa arrogância de pensar que o mundo pode ser aquilo que eles querem que o mundo seja. Intelectuais.

Ariana Cosme / Rui Trindade
Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação - Universidade do Porto

 


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 92
Ano 9, Junho 2000

Autoria:

Ariana Cosme
Fac. de Psicologia e Ciências da Educação, Univ. de Porto
Rui Trindade
Faculde de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade do Porto
Ariana Cosme
Fac. de Psicologia e Ciências da Educação, Univ. de Porto
Rui Trindade
Faculde de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade do Porto

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