Página  >  Edições  >  N.º 92  >  Os Bons e os Maus - Os reclusos são a comunidade dentro da prisão

Os Bons e os Maus - Os reclusos são a comunidade dentro da prisão

"...Como vista, tinha apenas um horizonte de 40 metros, até às altas paredes do pátio da prisão. O mais difícil é administrar o espaço e o tempo, que são extremamente reduzidos. Todos os dias são iguais, no mesmo espaço, no mesmo tempo e à mesma hora, convertendo os presos numa simples máquina humana, algo absolutamente horrível. Sempre te levantas à mesma hora, sempre estás no mesmo sítio, sempre com as mesmas pessoas e sempre com as mesmas actividades. Qualquer alteração, por insignificante que seja, é um presente celestial!"

Jornal Expresso (revista) 25/09/99


As palavras não são de um delinquente qualquer, mas de um recluso famoso, Mário Conde, ex-presidente do Banco Espanhol de Crédito (Banesto), que viveu a dramática experiência da prisão, mais de um ano atrás das grades. Na entrevista que dá ao Expresso confessa a imensa solidão de quem está encerrado, privado da liberdade. Solidão, marcada por rotinas de um quotidiano que se repete de forma constante e idêntica, que automatiza, onde "qualquer alteração, por insignificante que seja, é um presente celestial!".
Que alternativas de saída para a rotina e o isolamento? Mário Conde encontrou a resposta, quando afirma que teve a "oportunidade de ajudar alguns presos, ensinando-lhes matemática ou dialogando com eles". Dito de outra forma, conseguiu chamar a si a gestão do tempo, assumindo-se num determinado espaço como um animador/professor que se enriquece, enquanto pessoa, ao confessar que "mesmo num sítio tão horrível como uma prisão também é possível encontrar uma certa paz interior, espiritual", adiantando que a prisão é, sem dúvida alguma, o lugar do mundo onde descobrimos verdadeiramente quem somos, o nosso ser profundo, com todas as nossas qualidades e defeitos". Um outro aspecto positivo da dramática da prisão, segundo o seu depoimento, é que fez dele um homem melhor, mais humano, mais tolerante relativamente aos erros e às deficiências humans, mais concentrado nos seus afectos pessoais: "antes simpatizava com muita gente, mas sem profundidade, agora concentro a amizade em poucas pessoas, até porque tive a oportunidade de fazer a separação dos falsos e verdadeiros amigos".
Como se referiu no início do texto, o ex-líder social e ex-presidente do Banesto não era um delinquente qualquer... mas esta experiência, aqui descrita de forma muito sumária pode servir de referência para esclarecer, reequacionar e reflectir sobre a questão central que se coloca aos estabelecimentos prisionais - dias sempre iguais , com o tempo livre, demasiado livre, num modelo de prisão fechada sobre si própria, onde a lógica de funcionamento interno é marcada pela rigidez e pelo seu carácter repetitivo, nomeadamente no que respeita à organização do tempo e do espaço, marcado por um presente resignado e inevitável, onde o conhecimento e a reivindicação dos direitos são limitados e a única estratégia de vida e?a sobrevivência quotidiana.
Do ponto de vista desta relação, este modo de funcionamento considera os reclusos meros objectos, subestimando e menosprezando os conhecimentos, as capacidades, os interesses e afectos, constituindo-se como principal obstáculoao próprio funcionamento do sistema prisional nas suas relações com a sociedade, onde os "bons" somos nós e os que estão do nosso lado e os "maus" são os outros que estão do outro lado.
Esta postura é motivo de preocupação para quem trabalha, como o autor desta reflexão, com reclusos há cerca de três anos e que procura que a sua relação com os presos se estruture numa base de confiança, pois a experiência diz-lhe que se não confiar não tem a mínima possibilidade, já por si pequena, de os conhecer. Entendemos que os reclusos não podem ser estigmatizados pela sociedade à qual pertencem, como refere o artº 13 da Constituição da República Portuguesa: "todos os cidadãos têm a mesma dignidade social e são iguais perante a lei". As relações dos cidadãos com a população reclusa pautam-se, na maioria dos casos, por uma ignorância da realidade prisional, marcada, acima de tudo, por um significativo distanciamento e desconfiança, com a aquiescência de estereótipos que não se apoiam na realidade observada, mas em preconceitos e estigmas que se impõem a toda a comunidade reclusa, revelando uma incapacidade para compreender e aceitar a vida da prisão.
Perante esta realidade há um relativo consenso em mudar a imagem cristalizada do sistema prisional, "abrir" a prisão à sociedade civil, estabelecendo rela~ções de natureza mais aberta, interactiva entre a prisão e a comunidade, meio caminho andado para readaptação e reinserção de mulheres e homens reclusos. Neste contexto ganha pertinência a preocupação dos responsáveis do Ministério da Educação e do Ministério da Justiça de dar um sentido qualitativamente diferente ao nível da gestão do tempo/espaço nos estabelecimentos prisionais, instituindo cursos de educação escolar, "janelas" de oportunidade, que contribuem para o sair da rotina e produzem uma dinâmica de mudança nas relações entre reclusos e restantes actores sociais (professores, guardas prisionais, diferentes técnicos de apoio a reinserção...). Este tipo de medidas são importantes, mas como afirma Crozier (1982), "uma mudança não pode desenvolver-se e fixar-se senão na medidad em que as relações humanas se transformem. Mas as relações humanas não se transformam porque existe uma condição material que muda (...). Mudam na medida em que os homens são capazes de se organizar num jogo de relações diferente daquele em que operavam antes".
Das palavras de Cozier infere-se que as mudanças estruturais, desejadas pelos decisores, exigem mudanças de comportamento entre o pessoal da organização. Nesse sentido, é necessário mudar atitudes, substituindo comportamentos correspondentes a "receitas" anteriores por outras adequadas a um novo modelo de funcionamento, que adopte uma estratégia que evite jogos conflituais de "soma nula" (o que um ganha o outro perde) e desenvolva uma prática de jogos comprometidos de "soma não nula" (com benefícios para todos), que perspective, na nossa opinião, uma estratégia que promova a melhoria da qualidade ao nível da concretização de um triângulo, de interligação sistémica, de espaço/tempo/pessoas, que promova o desenvolvimento integral do recluso em conformidade com a orientação da sociedade. Podemos afirmar, seguramente, que o problema/solução das cadeias gira em torno deste triângulo. Nesse sentido, os responsáveis pelas cadeias têm de assumir, no futuro, uma política de investimento que induza modificações no interior dos estabelecimentos prisionais, ao nível da gestão do tempo e da organização do espaço, assim como apoiar a formação dos diferentes actores do sistema prisional (professores, técnicos de reinserção, guardas prisionais...), tornando-os capazes de promover a mudança e potenciar campos de socialização nos diferentes subsistemas de intervenção.
Estamos certos que a melhoria da qualidade de vida dos reclusos passa por um processo de mudança cultural que envolve alteração de valores tradicionais e de atitudes, nomeadamente para aqueles que vêm a prisão como uma ilha isolada da sociedade. Mudar esta mentalidade é difícil, mas não deixa de ser um desafio para todos aqueles que têm uma atitude de permanente melhoria, concretizada na preocupação constante de ouvir e compreender as necessidades e expectativas dos reclusos, de modo a poder, dentro do possível, realizá-las. Nesse sentido, é necessário melhorar os espaços, ocupar os tempos livres, mobilizar e incentivar a participação de todos os parceiros para a discussão, análise e sugestão de propostas que visem a melhoria dos diferentes serviços, mesmo quando estamos convencidos que o nosso contributo é pequeno, pois estamos cientes que são os "pequenos nadas"que fazem as "grandes diferenças".

José M. Teles Sampaio
Professor em Estabelecimento Prisional


  
Ficha do Artigo
Imprimir Abrir como PDF

Edição:

N.º 92
Ano 9, Junho 2000

Autoria:

José M. Teles Sampaio
Professor no Estabelecimento Prisional de Viseu
José M. Teles Sampaio
Professor no Estabelecimento Prisional de Viseu

Partilhar nas redes sociais:

|


Publicidade


Voltar ao Topo