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A Globalização Não é a Vida

1. ? Alexandre Melo (doravante A.M para poupar espaço tipográfico), crítico de arte, escreveu no "Expresso" (1. 4. 2000) um interessante artigo entitulado "A Globalização é a vida". Agradeço-lhe, porque me forneceu, por antitese, o tema para este "Fidebeque".

2. ? Para A.M, (a) "a globalização é o nome que se dá ao actual devir histórico das sociedades humanas". Por isso, (b) "a globalização não é uma coisa a respeito da qual faça sentido ser a favor ou contra". Mais devagar, por favor. Mesmo que se admita a bondade da premissa (a), a conclusão (b) não se impôe. Eis um exemplo revelador do carácter falacioso de (b). Hitler quiz globalizar a Europa para instaurar um reinado ("Reich") que durasse (pelo menos) 1000 anos. Fazia sentido ser a favor ou contra? Claro que fazia. Tanto assim que o projecto de globalização hitleriano nos custou a primeira (e esperemos que a última) guerra global da história da humanidade. Eram (felizmente) bastantes os que achavam que esse NÃO deveria ser "o devir histórico das sociedades humanas". E porque assim foi, o projecto de globalização hitleriano pôde ser (felizmente) combatido e acabou por ser (felizmente) derrotado, embora (infelizmente) à custa de dezenas de milhões de mortos e de uma escala de destruição nunca vista. Valeu a pena que tantos dos nossos antepassados combatessem e tantos perdessem a liberdade e/ou a vida no combate à globalização hitleriana ? Bem, cada um que responda por si. O que não é possivel é iludir a pergunta.

3.? Moral da história: há globalização e globalização. É impossivel ficar neutral em relação ao devir CONCRETO da globalização, ainda que se reconheça, como muito bem observa A.M, que, em sentido lato, ABSTRACTO, o processo de globalização "se confunde com a história da humanidade, já que o grau zero da globalização seria aquele em que cada grupo existente à face da Terra desconhecia em absoluto a existência de qualquer outro".

4.? Para A.M "a globalização não é um programa ou uma doutrina ? eventualmente maquiavélica, perversa, ou redentora ? concebida por uma qualquer entidade para a perdição ou salvação da humanidade". Estamos de acordo, com esta ressalva: a asserção só vale se (e só se) nos referirmos à globalização em sentido lato, abstractizante, a tal que se confunde com a história da humanidade. De cada vez que examinamos o concreto da globalização, o caso muda imediatamente de figura. Aí, como reconhece A.M, "cada sociedade concreta participa de forma mais ou menos gratificante na dinâmica da globalização consoante a sua capacidade de afirmação e de negociação, no quadro de uma correlação de forças em que os factores económicos são indissociáveis de factores sociais, culturais e geopolíticos. Os resultados, dependem, sobretudo, a cada momento , do ponto de situação das contradições internas dessa mesma sociedade" (sublinhados meus).

5.? Em suma, digo eu, o que é para algumas sociedades (e alguns grupos e alguns indivíduos) gratificante no modo concreto como, a cada momento, se aprofunda uma certa globalização, é, para outras sociedades (e outros grupos e outros indivíduos), doloroso ou mesmo excruciante. Exemplos não faltam. O embaraço está na escolha. Pensemos, por exemplo, no que se sucedeu às populações aborígenes que habitavam no que são hoje os E.U.A ou no que é hoje o Estado Australiano. As primeiras acabaram confinadas em "reservas", as segundas quase se extinguiram. Devemos assacar a responsabilidade por estes factos à globalização em sentido lato? Claro que não. No que é hoje o Estado Canadiano(Québec incluído, pelo menos por enquanto) as coisas têm vindo a seguir, felizmente, um rumo muito diferente. Digamos outra vez: há globalização e globalização.

6.? Pode-se dizer isto ainda mais concretamente, como o faz A.M: "a globalização não é homogeneização", e também "não é a americanização". Voltamos a estar de acordo. A americanização, se produz alguma coisa, produzirá americanos, e a homogeneização, se produz alguma coisa, produzirá mais do mesmo? os mesmos filmes (de Hollywood), os mesmos restaurantes (da McDonald), os mesmos cartazes (da Benneton ou da Adidas), as mesmas emissões (da CNN), etc ? de Lisboa a Luanda, de Nova Iorque a Moscovo, de Tóquio ao Bharein, de Paris a Tumbuctu.

7.? Quando, porém, A.M abandona o terreno das definições pela negativa, para entrar no das definições pela positiva, somos brindados com esta frase enigmática : "a globalização é a vida, que não é fácil, mas é a que temos". Por esta rampa ensaboada, deslizamos vertiginosamente para um beco sem saída: "as críticas à globalização"? ou seja, à vida? "são, no essencial, o resultado de uma incompreensão da história do século XX e do actual funcionamento da economia mundial". Isto pressupõe que A.M as compreende a ambas: história do século XX e economia mundial. Noutro passo, porém, afirma exactamente o contrário: "o grau de complexidade e imprevisibilidade das sociedades actuais é demasiado elevado para que quaisquer entidades ? empresas, Estados, organizações políticas, teorias ? possam aspirar a apreendê-lo na sua totalidade dinâmica, quanto mais prevê-lo, dominá-lo. As estratégias, tanto dos mais quanto dos menos poderosos, são defiinidas por tentativas, avanços, recuos, às apalpadelas no meio de uma rede de infinitas contradições sempre em movimento".

8.? Fica claro que a tentativa de definir "globalização" de maneira oracular, identificando-a com a História, a Vida, e sei lá que outras portentosas e esfingícas entidades, só aumenta a confusão. O conceito, para ser útil, deve ser radicalmente reduzido a dimensões humanas e ACTUAIS. Assim, por exemplo: "a globalização é, sobretudo, o alargarmento da capacidade de conversar à escala mundial, enriquecimento da cultura geral". A frase é de A.M, que se serve dela, porém, para ilustrar exactamente o seu contrário ( o facto de haver cada vez mais gente a ver os mesmos canais internacionais de televisão !). Mas pouco importa, a frase é justa: fala-nos de algo cujos progressos e retrocessos podemos medir e controlar? nós, os fillhos de Babel.

José Manuel Catarino Soares
ESE. Instituto Politécnico de Setúbal


  
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Edição:

N.º 90
Ano 9, Março 2000

Autoria:

José Manuel Catarino Soares
Instituto Politécnico de Setúbal
José Manuel Catarino Soares
Instituto Politécnico de Setúbal

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