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O Jogo do Galo

À Ana Maria Benard da Costa


Uma cruz, uma argola. Até parecem símbolos. A cruz, o peso da vida, a argola, o compromisso. Mil vezes jogado pelas crianças de Vilatuxe, Vilaruiva e Pencahue. Os três sítios que estou a estudar. Durante muitos e largos anos. A cruz, o símbolo do peso da vida, esse que o cristianismo ocidental aceita para salvar as obrigações. Esse que, transformado em verdade social e em verdade emotiva denominada fé, serve à meninada para brincar: #. Uma forma de brincar descontraída. Forma de brincar adequada para a idade da infância. Até chegarmos à vida adulta. Vida adulta que transforma essa argola, num compromisso. O compromisso com os outros, o compromisso de trabalhar, o compromisso de ser feliz, o compromisso de não se queixar. O compromisso de produzir com os dentes para descansar com as gengivas. Como diz o refrão que me foi transferido pela D. Olga Pasqua, lá, na minha Vila Ruiva, da Beira Alta. Compromisso de sermos procuradores da oferta que podemos alimentar. E, com esse alimento, fazer viver aos nossos e dar-lhes educação. Enquanto jogo do galo, é apenas ganhar ao amigo. Jogo de meninos, do qual as meninas são rapidamente desencorajadas. A procura não existe. Para elas é a oferta. De nós servir. De nos fazer pai um dia. Jogo perspicaz que a meninada feminina é suposta não poder. Coitada da que pareça ser inteligente! É logo corrida e não há rapaz que a queira para mulher: ia mandar mais ela que ele; ia compreender o mundo melhor do que ele. Ia saber. O mito tinha já imposto à humanidade ocidental na Bíblia, o que o Alcorão impôs sete séculos mais tarde: a sabedoria é do homem: cruz; a submissão, da mulher: argola. O lazer é do homem: cruz; os trabalhos infinitos, da mulher: argola; o prazer é do homem: cruz; o silêncio, da mulher, argola. O jogo do galo, por cima da galinha. Oferta e procura da memória social. O mundo mudo, fica globalizado, mas a oferta e a procura continuam como nos tempos do Renascimento, esse que levou aos Borgia e aos Medici, aos Windsor, aos Afonsos, aos Cabral, aos Alba e aos Medinacelli. Aos Hohenzoller, aos Valois e aos Bourbons. Esses poucos a fazerem uma fortuna que fez circular o capital e criar um aritmético jogo do galo para distrair o povo #. Na capacidade de procurar.

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1. Oferta e procura.

Uma lei económica feita e trabalhada pelos adultos . A partir da acumulação das riquezas pilhadas nos mundos exóticos. Adultos que começam por usar crianças no seu jogo de oferta, da fabricação da oferta, da fabricação de bens para vender. Bens que têm um preço, cruz, que cai por cima dos que procuram: argola. Os que procuram, querem trabalho, argola, os que oferecem, querem lucros, cruz. Cruz que atravessa, que cruza pelo pentagrama do jogo: # e o percorre da esquerda para a direita. Deitando as argolas para os sítios que os que procuram, as conseguem desenhar. A cruz é para o rico, como um carregamento do seu orgulho e bondade. Da sua santidade na vida, da sua benção no céu, feita já na terra, demonstrada já na terra. Como Max Weber soube anal comunhão. Quase um crescer à divindade, criada pela mente do ser humano mortal, para sobreviver e tornar a viver outra vez. Impostos e morte, verdade que é certa. Impostos, cruz, perante os quais o proprietário do lucro foge. Imposto, argola, perante o qual o trabalhador não tem fugida. Cruz e argola jamais explicadas à criançada que começa logo a entender o jogo do galo. Confronto com um outro que deve ser submetido. Um jogo mais difícil que o xadrez: não tem cálculo, tem aventura. Não tem matemática, tem aritmética puxada pela rapidez de quem começa primeiro e para quem sabe o canto até onde ir a seguir, para se defender. Argola. Procura da melhor habilitação para oferecer o melhor trabalho: argola. Oferta baixa se o proprietário do lucro observa muitos habilitados no mesmo saber: cruz. Ratio feito parte do jogo do galo na economia. Donde, a economia é um jogo do galo que a criançada apreende cedo na vida e acaba por não poder aplicar mais tarde, na época da sua vida adulta. Argola. Quando é preciso saber para manipular. Uma economia que está baseada nas quotas de importações e exportações, no jogo da bolsa tipo Wall Street. Cruz. Jogo do galo entre representantes da Assembleia, cruz, e votantes que vão às urnas para tentar empurrar um plano que lhes é conveniente. Cruz e argola. Cruz e argola que mudam através do tempo, conforme as vantagens ou falta delas, que a cidadania quer obter. Cruz, para atirar às pensões da massa de idosos que precisam do dinheiro como bem, argola que enche as urnas dos oferendes de mais dinheiro: dinheiro em investimento, dinheiro em fábricas nacionais, dinheiro em acções para controlar a cruz do galo que calha suportá-la. # passa a ser uma forma de se entrar pelos entendimentos do que há, pelos entendimentos do que convém fazer. E tanto é o jogo do galo que se pratica na infância, que acaba por ser uma aritmética, não uma matemática, apreendida logo em criança, mas esquecida em adultos. Excepto, no ordenado da Conta Ordenado dos bancos da União Europeia, argola: a mais oferta, maior criação de procura por meio da fabricação de mais dinheiro entregue a juros para determinar o preço da moeda, cruz. Alta, muito alta, cada vez mais alta. Juro, o preço do dinheiro que Wall Street sabe definir e a União Europeia e os seus aliados determinam com os pactos das exportações, as quotas dos países como mercado, cruz, os bens que se podem comprar, e os que estão doentes por lei, argola, ou os bens que se podem vender porque não há lei que proíba a sua oferta, cruz. Oferta de bebés de proveta, venda de óvulos e esperma aos biólogos ou aos sabedores de genética, cruz. Cruz e argola espalhados de forma incerta pelos "largos" da vida, com permanentes mudanças entre as épocas. O # , acaba por ser um instrumento de aprendizagem fabuloso do real social, da memória social. Essa habilidade que tenho observado nas crianças e convertido em ensaio na vida adulta: uma cruz é um jogador a ganhar, uma argola é um jogador em risco, o pentagrama do desenho do jogo, a teia da vida conjuntural pela qual se debruça a realidade. Conforme o saibam fazer os jogadores. Todos eles, hoje em dia, ricos em dinheiro e pobres em bens. Parte deles, ricos em bens investidos e pobres no entendimento do ioga da elevação da alma, da calma e serenidade perante a vida, da capacidade de entender o ideal oposto a todos os asiáticos: esse dos cristãos ocidentais onde o pobre vive eternamente: sempre e quando tenha fome, sempre e quando não tenha posses, sempre e quando não saiba exibir a sua arrogância, necessária como ela é para suportar a cruz com cara de sofrimento e pedir perdão à História perdão conveniente para os direitos humanos que fazem parte das guerras mais uma Armada Invencível com furos como os de Pinochet ou Milosevic perdão fora do contexto conjuntural necessário para entender a passagem da vida. Que a Cúria do Vaticano não soube entender, contextualizada como está pela necessidade de ser uma voz que vai à Palestina, que vai a Jerusalém, que colabora para fazer uma sociedade teísta o mundo, indo ao Monte Sinai para ver a rocha dos Dez Mandamentos cuidada pelos ortodoxos do Monte Carmelo que nem foram cumprimentar a fragilidade do Pontífice Católico, determinado como estava pela arrogância de dois mil anos de reclamada sabedoria, que determina a fazer esquecer que esses dois mil anos são também dos ortodoxos, dos muçulmanos, dos anglicanos, dos presbiterianos. Dois mil mitológicos anos, cruz e argola que, de facto, são mil e trezentos, conforme os historiadores e paleontólogos, esses que souberam em Cambridge entender como o debate entre Paulo e Santiago fizeram uma doutrina de abafamento para submeter pessoas ao trabalho não remunerado, pago com o corpo para salvar a alma e ganhar uma vida calma, depois da morte. Cruz e argola. Conjunturas esquecidas.

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2. Conjunturas esquecidas. Argola.

Conjunturas esquecidas, caro leitor, pelos que devem ensinar crianças. Conjunturas esquecidas essas do jogo do galo. Primeiro, porque não se sabe tirar proveito do que a criança já sabe, para retirar daí o que pode aprender a seguir. A educação está baseada na mania de incutir saberes na mente do outro. Mania. Porque o adulto do ministério, bem como os adultos da casa, pensam que a criança nada sabe. Os que tenham lido os meus textos neste jornal, que cuidadosamente dirige José Paulo Serralheiro (ver Editorial do número anterior), podem apreciar que estas minhas homilias são retiradas do convívio com crianças que observo e estudo. Observação que me ensina que o jogo do galo, como outros jogos, são a base para semear o saber experimentado pelos doutores nos observatórios, nas investigações, essas que os professores não podem fazer. Embora sejam obrigados a saber e a ensinar. Ainda que não entendam. Nenhuma lei existe que peça aos docentes do primário um mestrado; nenhuma lei pede aos docentes do secundário um doutorado. Por outras palavras, não há clonagem, há um transferir de experiência para os que ensinam. A profissão docente é para os pobres que não conseguem custear outras profissões; ou que nasceram num lar onde não se debate o centro do desenvolvimento da nação, do estado, do reino, da república, das casas individuais, dos lares dos estudantes. Os professores das nossas crianças estão submetidas: a vinte e cinco horas de aulas, ou dezoito, ou uma semana cumprida que enche as horas de escola e as horas do lar, para corrigir trabalhos, para preparar mais aulas, para procurar alternativas aos programas importados de outros países, experimentados durante longos séculos nos Estados do Norte da União Europeia. Nós, ainda estamos a organizar seminários de como ensinar História, e qual História ensinar; por acaso, não sabemos já que a conjuntura faz ao indivíduo, porém a História precisa de dar a conhecer à humanidade do inventor duma ideia, se era casado, solteiro, o seu objectivo amoroso, o seu objectivo científico, outros dados do contexto, que o pedir perdão à história cria um modelo de arrependimento já não mais necessário? Necessário era abrir as bolsas do Estado para melhorar a educação e a sua estrutura: começar por ensinar professores na pesquisa que permitam ensinar num contexto de pergunta que leva a procurar uma resposta adequada à própria criança. Que cria na criança uma necessidade de inquirir. Inquietação que a criança traz já consigo para o adulto aproveitar sem orientar dentro das suas ideias, o que a pequenada quer saber. Se medo de dizer a realidade, abatida pela ética que existe para outros aspectos da vida. Sem confundir a ida à escola com a ida ao lazer, ao gasto do tempo enquanto o adulto trabalha.

Um segundo erro de ignorar as conjunturas é pensar que os amigos que pensam como eu, que são os da minha ideologia, vão saber retirar das suas cabeças os melhores planos de estudo, os melhores programas de aulas, os melhores planos para entender o processo educativo feito no lar. Lar não conhecido pela quantidade de estudantes que um professor deve suportar dentro das suas salas de classe. Sentado no ministério, é trabalhar muito na burocracia para organizar as actividades do exército de docentes que povoam o país. Um exército que acaba por ser pouco considerado na esfera política, mas muito considerado na esfera social. Considerado, pelo pensamento dos pais que os seus filhos serão advogados. Procura, cruz. E os filhos acabam por serem gestores, oferta, argola. Pais que poupam para o descendente aprender, argola; descendência que passa a comprar dinheiro, cruz, que vão usando para eles, argola. As conjunturas regionais, locais, pessoais, precisam de ser parte do programa: cruz. Porém, há professores destacados anualmente para outros locais, argola. A transferencia anual dos docentes não permite aprender mais pedagogia, só baralhar a cabeça da pequenada com formas diferentes de educar e de interesse da parte dos seus docentes, argola. Especialmente nesta sociedade globalizada, na qual o ranger da pena nem é muito utilizado em determinadas escolas duma determinada cidade, criando-se a informatizada linguagem-Net, como diz Luis Souta na edição anterior deste jornal. Linguagem que separa os sexos mais rapazes, menos raparigas, criando uma linguagem além da gramática, ainda não codificada. Argola para os ascendentes, cruz para os descendentes. Mas, cruz mítica simbólica para todos os que têm que lidar com a pequenada.

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3. A vida muda. Cruz.

De certeza. O jogo do galo é parte da vida da pequenada. Mas continua a ser um jogo de adulto. Permite entender a experiência do outro. Se sabe pensar, se tem calma, se é sereno, se fala de forma conveniente enquanto pensa. A vida muda, como o corpo da criança muda. E outros interesses passam a ser parte da sua vida. A vida muda enquanto a aranha miúda está crescer. A crescer no meio das mudanças do seu corpo e a dos seus sentimentos. Da escrita com caneta, à escrita no computador. Há necessidade de aceitar. Sempre e quando seja igual para todos. Há, para responder ao texto de Luís Souta no número anterior deste jornal, uma geração que convive com os adultos que nem o televisor conheciam, até há poucos anos, como os adultos que vivem pendurados do aparelho e não usam a biblioteca que, talvez, exista em casa, argola. Ou talvez não, mas há um jornal a comprar e a debater. Para habituar a população ao debate informado. Para habituar à população a gostar da ética e estética que o debate produz, quando a mente comanda os sentimentos. Não no namoro. O namoro é para ficarem perdidos. O saber, é para ficarem achados e poderem andar entre as cruzes e as argolas que o jogo do galo nos dá à nossa vida. Especialmente, no processo educativo. O jogo do galo, retirado como foi da minha pesquisa entre crianças, dos seus pais e dos seus professores. E da minha própria experiência como orientador de investigadores: transferimos o nosso saber, cruz, para investigadores que ficam muito ocupados com os seus deveres, argola. Aí, onde pensámos ter criado uma amizade em torno do saber saber que passa a ser mais uma bengala para as corridas dentro de vida académica e não a bengala que nos acompanha no próprio crescimento do nosso saber. Cruz e argola.

À laia de conclusão. À laia de responder ao editorial do nosso Director. À laia de debater com o texto de Luis Souta. Cruz, cruz e cruz.

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4. Bibliografia.

Este texto foi escrito na base dos: Ensaios sobre a sociologia da religião, de Max Weber (1905 e 1920) 1998, Ed.Taurus, Madrid. Dos meus textos: Como era quando não era o que eu sou. O crescimento das crianças, 1999 Profedições, Porto; do meu livro no prelo O saber sexual das crianças, Afrontamento , Porto, das minhas aulas sobre Antropologia Económica e do livro que estou a preparar a Economia deriva da religião, bem como dos textos citados de José Paulo Serralheiro: editorial A página da educação nº.89 Março 2000 e de Luis Souta: Geração-Net. Verso e reverso, do referido número do jornal, das ideias de Adam Smith no seu A riqueza das nações (1776) 1874, e inúmeros jogos do galo por mim feitos enquanto recupero de uma intoxicação alimentar, a seguir do meu recente trabalho de campo.

Raúl Iturra
Instituto Superior de Ciências do Trabalho e da Empresa (ISCTE) / Lisboa


  
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Edição:

N.º 90
Ano 9, Março 2000

Autoria:

Raúl Iturra
Instituto Superior das Ciências do Trabalho e da Empresa, Lisboa
Raúl Iturra
Instituto Superior das Ciências do Trabalho e da Empresa, Lisboa

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