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Geração-Net - Verso e Reverso

«As nações, com sorriso bestial,
Abrem, sem ler, o livro do futuro.»
"Os vencidos" in Sonetos, Antero de Quental.


«A Comissão Europeia propõe ligação de todos os estabelecimentos de ensino. "Geração-Net" nas escolas até 2002» Público, 8/2/00.
Saudável propósito este de transformar os nossos futurekids em «netizens», isto é, «um cidadão em cada teclado» 1.

O verso

Habilitá-los com essa novíssima literacia ? a das tecnologias de informação e comunicação (TIC) ?, é condição sine qua non, segundo os dirigentes da UE, para se formar gente capaz de ganhar a "guerra" da «economia do conhecimento», nesta hodierna «sociedade da informação» 2. Os EUA aparecem aqui, simultaneamente, como padrão de comparação e "inimigo" a vencer, numa luta concorrencial, nem ideológica nem militar, mas económica. O atraso da Europa, no que respeita às TIC e, em particular, no acesso à Internet, é inquestionável e repleto de assimetrias: o uso da Net é ainda classista (está concentrado nos grupos sociais de maiores rendimentos), sexista (os homens são os maiores consumidores) e regionalista (o Norte da Europa tem a maior taxa de utilização). Conscientes deste défice, as autoridades recorrem, como vem sendo hábito, à escola. Ou não fosse esta a melhor instituição, das sociedades democráticas, para massificar depressa e bem (?); no caso presente, é preciso dar competências informáticas a cerca de 81 milhões, menores de 25 anos, que frequentam os estabelecimentos de ensino dos Estados-membros da UE. Um verdadeiro batalhão de cibercidadãos para o advento do milénio, a tal «Geração-Net» (há quem prefira apelidá-os de «Geração-Joystick», mais dados às play stations, aos video games e aos jogos de computador). Entre nós, o grande obstáculo, para tão ambiciosa cruzada informática, não parece residir na ausência de política (Comissão Europeia dixit), na falta de dinheiro (os fundos comunitários parecem um "saco azul" sem fundo), no parco equipamento (os mecenas já perceberam que a oferta de computadores é um investimento de retorno rápido), ou na inadequação das instalações escolares (os velhos pré-fabricados vão dando lugar às "escolas-modelo" com sofisticado aparato tecnológico). Nada disso, o grande obstáculo, como também vem sendo habitual, está nos recursos humanos, os professores. Porém, a eficaz comissária europeia (do pelouro do emprego) indica o caminho a seguir: «treinar os professores e repensar os sistemas educativos» ? não temos andado a fazer outra coisa nas últimas décadas! E até já advertiu, com prosápia administrativa de eurocrata: os docentes têm que ser «competentes na matéria de forma verificável» senão? e ela não o disse 3. Agora é que vai ser "teclar", navegar nas tão propaladas auto-estradas da (in)formação. Avizinha-se, finalmente, uma vitória do «Portugal sentado», mais dado ao trabalho intelectual, à reflexão, à análise, à pesquisa, à escrita ? e ao devaneio.

O reverso

Nestas alucinantes viagens, os cibernautas, mais jovens ou menos críticos, podem deixar-se ofuscar pela melopeia do "admirável mundo novo". Permitam-me, então, uma chamada de atenção para a "outra face da lua", a dos efeitos perversos desta onda tecnológico-comunicativa que importa evitar. Apenas dois exemplos concretos, passando ao lado das contas telefónicas (nesse fenómeno de prestidigitação em que as telecoms publicitam o acesso grátis à world wide web e a queda de preços mas as nossas facturas mensais não param de aumentar), da alienação informática (de que tanto se queixam pais e esposas abandonados por filhos e maridos "viciados" na online), da uniformização cultural, ou dos temidos hackers e seus ciber-crimes.

1. Os modernos computadores pessoais ao virem já equipados com fax, modem para correio electrónico, e ligação à Net, numa ferramenta do tipo 3 em 1, segundo o princípio construtivista (mas nada inócuo) da "autonomia do utilizador", tem-nos tornado, gradualmente, pau-para-toda-a-obra. Trabalhamos mais (ai que saudades das 8 horas semanais!) e ocupamo-nos com tarefas dignas dos "mangas-de-alpaca". Deste modo, o chamado "pessoal menor" vai passando à categoria de "excedentes" e nós, com o epíteto de "quadros técnicos qualificados", vamos andando aos papéis (hoje mais virtuais que reais), dando conta da dactilografia (agora reciclada em processamento de texto), do expediente e correspondência (o vulgo e-mail) e de tantas outras miudezas burocráticas e técnicas (como mudar o tinteiro da impressora) enquanto sonhamos com o «teletrabalho».

2. O pujante e imparável Inglês, essa língua franca que conseguiu já hoje um estatuto que o latim nunca alcançou 4, esbate barreiras e permite o diálogo pan-nacional, mas vai inexoravelmente delapidando o património linguístico regional e nacional 5. Concomitantemente, a língua portuguesa (tal como a generalidade das suas "congéneres") definha, perde a qualidade e degrada-se a olhos vistos. Constate-se a ortografia ou a sintaxe nos e-mail do nosso quotidiano computorizado: escreve-se mais, sem dúvida, mas pior, muito pior. A pressa no envio da mensagem (no fundo o que se deseja é a chegada rápida da resposta), arrasta-nos para uma escrita apressada, onde se omite a acentuação, se aligeira a ortografia, cada vez mais sintética e, nalguns casos, quase cifrada (exemplos: K é K = que é que; K7 = cassete). Depois de escrito, não se procede à correcção (cuidado de que não prescindíamos na carta convencional enviada por snail-mail) pois a preocupação é carregar no send; ele aí vai, à velocidade da luz, mas cheio de erros. Estamos confrontados com a emergência de uma nova pragmática da língua escrita? Um fado da modernidade?

Luís Souta
Instituto Politécnico de Setubal

Notas

  1. Título do DN de 11/12/99 à entrevista a Stefano Rodotá, professor da Universidade de Roma e grande defensor das TIC como propiciadoras da democracia directa.
  2. A chuva de conceitos não cessa de inundar o nosso vocabulário, tornando quase ciclópico este esforço para nos mantermos à la page do jargão mediático.
  3. Para os resistentes aos computadores (militantes ou comodistas) aqui deixo duas sugestões bibliográficas, em formato de short stories bem humoradas, do Carlos Medina Ribeiro: Crónicas da InforFobia. Edições Centro Atlântico, 1997, 156 p.; Operação Jeremias: desventuras de um jovem informático numa Sociedade de In?formação, Baleia Azul, 1999, 146 p. Compre, leia, e faça proselitismo entre os colegas, amigos e familiares? o ME, MCT e a UE agradecem.
  4. Este imperialismo linguístico é gémeo de um outro, o monetário ? o do dólar americano.
  5. Reparem como este artigo está pejado de termos ingleses.

  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 89
Ano 9, Março 2000

Autoria:

Luís Souta
Instituto Politécnico de Setúbal
Luís Souta
Instituto Politécnico de Setúbal

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