Página  >  Edições  >  N.º 88  >  Hote? O que é Hote? Não vem no Dicionário

Hote? O que é Hote? Não vem no Dicionário

(breve incursão aos laboratórios escolares)

E, no entanto, os alunos com dificuldades de aprendizagem
revelam um gosto especial pela aprendizagem experimental

O actual debate em torno do ensino secundário tem o mérito de trazer à discussão outros temas a si associados, poucas vezes objecto de análise. E um desses temas pertinentes é, sem dúvida, a segurança dos laboratórios escolares - em particular os de Química, que, pela natureza das experiências, se revelam mais propícios a acidentes (está ainda bem presente o acidente que atingiu uma professora e um grupo de alunos da escola secundária do Cartaxo). E torna-se tanto mais pertinente abordar a questão se tivermos em conta que uma das principais apostas contidas na nova proposta apresentada pelo ME passe exactamente pelo reforço da componente laboratorial e experimental das disciplinas de carácter científico.
Porém, a avaliar pelos depoimentos e informação que recolhemos, nem tudo está bem neste domínio. Muitos laboratórios escolares têm um atraso superior a vinte anos relativamente às mais recentes normas de segurança praticadas, não existindo qualquer legislação específica actualizada. A que existe guia-se pela legislação sobre incêndios em edifícios. Além disso, não há qualquer tipo de inspecção periódica por parte de pessoal qualificado, cabendo a responsabilidade da manutenção dos laboratórios ao director de instalações de cada escola. No caso de ocorrer um acidente - que, como já se verificou, não é tão raro quanto possa parecer - o seguro escolar é o único mecanismo previsto para cobrir possíveis despesas com tratamentos.
As escolas mais modernas, construídas na última década, foram equipadas com material mais recente e a tipologia dos laboratórios obedece a critérios mais funcionais. Mas nas escolas mais antigas, como é o caso da secundária Carolina Michaelis, no Porto, os meios são confragedoramente limitados.
Os únicos meios de intervenção rápida existentes na maioria dos laboratórios daquela escola são extintores e caixas de primeiros socorros, como explica Daisi Leitão, professora de Físico-Química e presidente do conselho directivo. As instalações e os meios postos à disposição para a realização de experiências também deixam muito a desejar.
"Há alguns anos, a maior parte destes laboratório tinha gás canalizado e água corrente, mas a falta de manutenção deteriorou todas as condutas", refere. Por esse motivo, a direcção da escola mandou selar as condutas de gás, sendo este actualmente utilizado a partir de pequenas botijas. As experiências de maior risco são efectuadas num laboratório que sofreu obras de remodelação o ano passado, encontrando-se, nomeadamente, equipado com hote (nicho com exaustão, protegido por uma porta de vidro em guilhotina, onde devem ser realizados todos os trabalhos que envolvam o risco de explosão ou a manipulação ou libertação de gases nocivos, tóxicos ou inflamáveis).
Assim, a única forma segura de prevenir acidentes nos restantes laboratórios passa por não usar certo tipo de substâncias altamente tóxicas - como potássio, fósforo ou bromo -, que, aliás, deixaram de ser recomendados. "Na área disciplinar de física há muitos professores com cancro e não é por acaso", diz Daisi Leitão. "Quando éramos estudantes lidávamos quase diariamente com substâncias como o mercúrio, o amianto e certos materiais radioactivos, que hoje são consideradas extremamente perigosas para a saúde. As redes de amianto, por exemplo, foram completamente banidas".
Em Portugal, as autoridades competentes nunca elaboraram, nem tão pouco divulgaram nas escolas, uma lista destes materiais perigosos. "São os professores que se vão apercebendo a partir do que ouvem ou do que lêem, e são eles que tomam a iniciativa". E só não tem havido mais "reboliço", garante Daisi Leitão, porque os professores vão-se adaptando às condições, trabalhando preferencialmente com substâncias menos reagentes, como o Lítio ou o Sódio.
Mas esta professora considera "particularmente grave" a situação nas escolas básicas, onde, por falta de condições na grande maioria dos estabelecimentos, os alunos não recebem a preparação científica adequada. "Chegam aqui e nem uma lamparina sabem acender", diz com alguma ironia.

Promessas adiadas

A Escola Básica 2,3 Maria Lamas espelha bem o exemplo atrás referido. Rosalina Hipólito, professora de Físico-Química, trabalha ali há onze anos e não tem dúvidas em afirmar que na escola "não existe um laboratório".
O local onde dez turmas do 8º e 9º ano - cerca de trezentos alunos - trabalham, não passa de uma sala comum, adaptada há quatro anos a pedido desta professora, ainda assim com melhores condições que a anterior. "Andava com o material de um lado para o outro e pedi um espaço onde desse pelo menos para realizar as aulas práticas. Mas não cabe na cabeça de ninguém chamar laboratório a uma sala com duas torneiras e uma banca adaptada".
Nos últimos anos, conta à reportagem da Página, a direcção da escola enviou diversas cartas dirigidas à Direcção Regional de Educação do Norte com um pedido expresso no sentido de ser construído de raiz um laboratório. Ainda no ano passado, a presidente da comissão instaladora falou pessoalmente com o director-regional, Jorge Martins, que assegurou que todas as escolas estariam equipadas com laboratórios até ano 2000. A Maria Lamas, pelas suas características, teria prioridade. "Mas até agora, como se pode ver, não foi concretizada qualquer promessa", diz Rosalina Hipólito.
Há dois anos a escola integrou o projecto Ciência Viva - iniciativa do Ministério da Ciência em cooperação com o Ministério da Educação - conseguindo, nesse âmbito, adquirir material para química e física no valor de três mil contos. Mas, por falta de instalações adequadas, a maioria desse material encontra-se guardado num armário, onde até há pouco tempo chovia. "Utilizamos apenas cerca de vinte por cento daquele material porque não há condições de o acolher".
Tal como na Carolina Michaelis, também aqui o extintor é a única medida de segurança presente. Determinadas substâncias, como o óxido de mercúrio, não podem ser utilizados por faltar uma chaminé para exaustão de vapores. "O que acontece a maior parte das vezes é serem os professores a manipular o material, porque além de não estarem reunidas as condições de segurança, não há material que chegue para todos os grupos de trabalho".
Um facto que Rosalina Hipólito lamenta, já que as turmas com maiores dificuldades de aprendizagem revelam um gosto especial pela aprendizagem experimental. "É curioso constatar como numa escola de risco como é a Maria Lamas, com um grande número de alunos desfavorecidos, notar-se que as aulas práticas surtem efeito na aprendizagem. Nas aulas teóricas é muito difícil eles interessarem-se pela aplicação daquilo que estão a aprender". Lembre-se que cerca de metade dos alunos da Maria Lamas conclui ali a sua escolaridade, e saem, em princípio, habilitados com um curso técnico profissional.

Normas de segurança

Mas afinal, quais são as regras de segurança indispensáveis em qualquer laboratório? Inúmeras. A começar pelos materiais utilizados na construção do mobiliário, em especial dos tampos das bancadas, que devem ser resistentes a produtos químicos e acções mecânicas, ter baixa porosidade, permitir fraca adesão de resíduos, bem como serem de fácil limpeza e descontaminação.
A madeira e a ardósia, comummente utilizadas, são materiais que não apresentam estas características. Ambas são bastante porosas, absorvendo facilmente sujidade e acumulando resíduos. A ardósia risca e lasca facilmente, o que mostra a sua fraca resistência mecânica. Actualmente, de acordo com o que a Página apurou, existem materiais melhores, mais baratos, que poderiam substituir aqueles materiais com vantagens.
Outra das normas de segurança diz respeito à utilização de aquecimento com chama, utilizando queimadores de gás, fortemente desaconselhada devido ao elevado risco de incêndio e explosão que existe em laboratórios de química. Por essa razão, as saídas de gás só deveriam existir dentro das hotes e nunca nas bancadas.
A hote, refira-se a propósito, é um aparelho indispensável em qualquer laboratório de forma a assegurar a remoção de vapores inflamáveis ou tóxicos e de gases, e garantir um local seguro onde realizar experiências perigosas. A ventilação de cada hote deve ser feita através de condutas que liguem directamente ao telhado. Além disso, as janelas de protecção devem ser de vidro anti-choque, ou de plástico muito resistente com pelo menos 7 milímetros de espessura.
Muitos dos trabalhos sugeridos em manuais escolares e nos próprios programas oficiais têm a indicação explícita de que só devem ser realizados em hotes. Refira-se, nomeadamente, os trabalhos que envolvem a manipulação de solventes orgânicos tóxicos - como o amoníaco, ácido clorídrico e ácido nítrico concentrados - que são realizados no 11º ano, bem como trabalhos que envolvem a libertação de gases tóxicos, como é o exemplo dos óxidos de azoto e óxidos de enxofre, realizados no 12º ano.
Alguns autores sugerem até que todo o trabalho laboratorial deveria ser realizado nestes aparelhos, servindo as bancadas apenas como zona de apoio.
Em relação a estas últimas, devem ser sempre dispostas de modo a que a saída de qualquer local do laboratório possa ser efectuada em duas direcções. É conveniente existirem duas saídas de emergência, devidamente assinaladas com sinalização de segurança, com iluminação autónoma, indicativa dos caminhos de saída.
Por outro lado, as portas devem ser resistentes ao fogo e possuir uma barra anti-pânico (em praticamente qualquer edifício moderno existe este tipo de portas). Além disso, todos os laboratórios devem estar equipados com chuveiro, particularmente útil no caso de incêndios de vestuário ou de derrames de produtos perigosos sobre o corpo, tratando-se de um dos mais elementares equipamentos de segurança.
É obrigatória a existência de meios de primeiros socorros, como por exemplo garrafas lava-olhos, cujo principal inconveniente é o facto de não permitirem uma lavagem de água corrente de 15 minutos. É ainda essencial que todas as zonas do laboratório estejam bem iluminadas, recomendando-se o uso de lâmpadas fluorescentes para o tecto, que deve ser protegido de vapores e poeiras. Todo o sistema de iluminação deve ser do tipo anti-deflagrante.

"Falta de rigor"

As normas acima descritas foram retiradas de alguns livros e revistas dedicados à química, onde se referem as características às quais devem obedecer os laboratórios de química destinados ao ensino, e são aprovadas, nomeadamente, pelo 'Occupational Safety and Health Administration', dos Estados Unidos.
Porém, ao contrário do que se poderia pensar, elas não foram compiladas por qualquer organismo oficial, mas sim pelo professor António Ferreira, professor de Físico-Química numa escola secundária da região de Coimbra. Este professor descreveu à Página a sua má experiência por ter denunciado, há dois anos, ao conselho directivo e às autoridades competentes, a falsificação de mantas anti-incêndio fornecidas à escola.
As mantas, que em princípio deviam ser feitas em lã, eram fabricadas em acrílico, um material consideravelmente inflamável. O fornecedor admitiu ter havido "um erro", mas nenhum processo judicial foi accionado. Para mais, refere António Ferreira, "quem procedeu à investigação do caso foi uma equipa da RTP, não foram as autoridades competentes do ministério". E não tem dúvidas em afirmar que caso não tivesse ficado provada a sua razão, seria alvo de retaliações.
"Os pais confiam os filhos às escolas, mas não têm a garantia de que a escola seja um lugar seguro", diz Mário Frota, presidente da Associação de Consumidores de Portugal (ACOP), organismo que deu conta deste facto, através de uma carta ao Ministério da Educação, onde se exigia que as deficiências apontadas fossem revistas pela inspecção escolar. "O ministério, perante tais denúncias reagiu e procurou desvalorizar a situação. Não é essa a função do ministério. Os poderes públicos deveriam assumir a verdade", frisa Mário Frota.
Mais recentemente, em 1998, após seis anos de apelos à Direcção Regional de Educação do Centro (DREC), as instalações laboratoriais da escola sofreram uma intervenção profunda. Apesar da melhoria significativa das condições de trabalho, as transformações ficaram longe de ser as mais adequadas. Isto, explica-se na exposição que o director de instalações de Química enviou em Julho do ano passado à DREC, porque "as soluções técnicas implementadas não tiveram em conta as determinações de segurança mais recentes. Foram aplicadas soluções antiquadas e desajustadas face às necessidades de um ensino experimental moderno e às exigências dos próprios conteúdos programáticos".
É por estas razões que António ferreira diz haver, no mínimo, "falta de rigor" na forma como são equipados e remodelados os laboratórios escolares. Mais: "Parece existir uma certa cumplicidade entre as direcções regionais de educação e os fabricantes de material, porque existe um maior contacto com eles do que com as escolas". Além disso, garante Ferreira, existem empresas especializadas na montagem destas estruturas que fariam um trabalho melhor praticamente com o mesmo custo. "Porquê que o ministério não utiliza estes serviços através de concurso público?", questiona-se. "Fica mais caro, mas fica bem. Por isso, só posso acreditar que na origem desta decisão estejam critérios economicistas".
"O facto é que a segurança dos laboratórios falha e o importante é acautelar riscos, fazendo as obras de remodelação indispensáveis", afirma, por seu lado, Mário Frota.

Ricardo Jorge Costa


  
Ficha do Artigo
Imprimir Abrir como PDF

Edição:

N.º 88
Ano 8, Fevereiro 2000

Autoria:

Ricardo Jorge Costa
Jornalista do Jornal A Página da Educação
Ricardo Jorge Costa
Jornalista do Jornal A Página da Educação

Partilhar nas redes sociais:

|


Publicidade


Voltar ao Topo