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Fátima Antunes em Entrevista a "a Página"

"Será assim tão importante preparar
para um emprego que não existe??"

"Apostar tanto no ensino profissional
teria alguma lógica em pleno emprego"

Numa altura em que se discute o futuro do ensino secundário em Portugal, a partir de uma proposta recentemente apresentada pelo Ministério da Educação, fará sentido tentar saber um pouco mais sobre a opinião de quem "pensa" a Educação. Fátima Antunes, Mestre em Ciências da Educação pela Faculdade de Psicologia do Porto - área de especialização em Educação, Desenvolvimento e Mudança Social - é, desde 1996, investigadora do Centro de Estudos em Educação e Psicologia, do Instituto de Educação e Psicologia da Universidade do Minho, desenvolvendo o sub-projecto individual a "relação escola-trabalho" no contexto da globalização: a criação das Escolas Profissionais, no âmbito da preparação de provas de doutoramento. Mais recentemente, em 1998, tornou-se Assistente do Departamento de Sociologia da Educação e Administração Educacional deste mesmo instituto.
Políticas educativas, globalização e intervenção da União Europeia no domínio da Educação, análise comparada das políticas em Educação, ensino e formação profissional são os actuais temas de investigação desta professora que já leccionou no ensino secundário, exerceu funções técnico-pedagógicas na equipa técnica do Conselho Coordenador da Formação Contínua de Professores, em 1993, e no ano seguinte realizou a coordenação pedagógica de manuais escolares nas Edições Asa.


P - Que vantagens e que debilidades encontra no actual esquema de organização do ensino secundário em Portugal quando comparado com outros países europeus?

R - Não sei se poderemos falar deliberadamente de vantagens e de debilidades. O nosso sistema de ensino tem características próprias em relação aos outros países europeus, nomeadamente face aos mais desenvolvidos. A fase de expansão mais significativa, ao contrário do que aconteceu com outros sistemas de ensino, tem apenas dez ou quinze anos. É um fenómeno muito recente, quer pelas "consequências" que poderiam ser retiradas do aumento de qualificações por parte da população portuguesa, quer por aquilo que poderia constituir-se como que uma "interiorização" por parte da população em geral e dos grupos sociais desse alargamento e consequente democratização do ensino secundário, quer em termos mesmo do que poderia advir para as próprias escolas, em termos dos modos de organização e dos modelos de desenvolvimento do curriculo. Era necessário uma experiência mais prolongada. Analisando esses pontos de vista pode admitir-se uma maior fragilidade relativamente a países onde o ensino secundário se encontra em expansão desde há três ou quatro décadas.

P - Podemos encarar essas questões como uma debilidade?

R - É sem dúvida uma maior debilidade, sobretudo se pensarmos naqueles países que têm mais consolidada a expansão de uma escolaridade prolongada - o que habitualmente se denomina "cultura de escolaridade prolongada" - e de uma cultura social que contempla uma distribuição muito equilibrada de qualificações elevadas. Entre nós, como já referi, esse fenómeno é muito recente, e suponho que não está ainda suficientemente interiorizado, se pensarmos nele como algo adquirido, como parte da nossa experiência comum.

P - Concorda com a introdução da escolaridade mínima obrigatória de doze anos?

R - A implementação da obrigatoriedade de um dado grau de ensino nunca é inconsequente. Se pensarmos que uma das "consequências" positivas poderia advir numa aceitação comum daquilo que constituiria um grau de escolaridade "normal", fazendo com que todos aproveitassem esse conjunto de conhecimentos, de cultura e de experiências em igualdade de circunstâncias, seria uma medida a apoiar e talvez valesse a pena ir nesse sentido. Suponho que deste ponto de vista não haverá reservas.
Mas, ao mesmo tempo, teríamos colectivamente de ponderar quais as "consequências" negativas, isto é, pensar naqueles que sairiam penalizados, naqueles que não poderiam retirar benefícios dessa oportunidade.

P - A professora refere num artigo recentemente publicado neste jornal, a propósito da proposta de revisão curricular no ensino secundário, que as alterações ali preconizadas "vão no sentido de acentuar as divergências entre os dois tipos de cursos no ensino regular, tornando-a socialmente injusta". Quer desenvolver a ideia?

R - A minha afirmação pretende demonstrar que a acentuação das clivagens entre percursos escolares fará com que um determinado sector de ensino se torne mais injusto relativamente ao outro. E porquê?
A questão da diversificação, ou da preocupação em proporcionar diferentes percursos à população escolar, é algo de inevitável e poderá servir para enriquecer e aprofundar a democraticidade do ensino. Mas o problema é que, entre nós, diversificação sempre foi sinónimo de proporcionar percursos escolares diferentes, abrangendo grupos de alunos com percursos anteriores diferentes, provavelmente com referências culturais, estilos e origens sociais igualmente diferentes. Esta forma estreita de encarar a diversificação, ou a diferenciação do ensino - e aqui pode falar-se de uma forma bastante segura porque podemos analisar dezenas de sistemas de ensino com décadas de experiência - constrói desigualdades, porque institucionaliza percursos diferentes, proporcionando recursos e oportunidades diferentes aos vários estratos da população. Ou seja, vão geralmente no sentido de beneficiar os grupos de alunos que são já socialmente beneficiados e desfavorecer aqueles que, já de si, são desfavorecidos. Depois há outras questões, como a estratificação de públicos, conhecimentos, percursos, numa hierarquia que inevitavelmente desemboca na produção de desigualdades.
O que muitas vezes nem sequer se discute é o valor educativo desses percursos. Pode acontecer que, à partida, percursos socialmente desvalorizados sejam do ponto de vista educativo tanto ou mais interessantes do que os outros.

P - Algo que a nova proposta para o ensino secundário, apresentada pelo Ministério da Educação, não tem o condão de inverter?

R - Penso que esta proposta, tal como a conhecemos, vai no sentido de acentuar essa clivagem, podendo mesmo agudizá-la. Não constitui de forma alguma uma aproximação entre os diferentes percursos e uma valorização mais equilibrada dos diferentes conjuntos de saberes e práticas, pelo contrário, acentuam-se as dicotomias.
Na nova proposta existem pelo menos duas diferenças fundamentais relativamente às transformações operadas no ensino secundário ao longo da década de oitenta.
Todas as propostas de diversificação - todas elas foram nesse sentido - eram apresentadas através de um discurso que enfatizava o facto de todas elas proporcionarem o acesso ao ensino superior. Nessa altura até se chamou a atenção para o carácter mistificador desse tipo de discurso, porque se criavam vias direccionadas para o mercado de emprego e se as valorizavam com um hipotético acesso ao ensino superior. Não vamos agora discutir se os diplomados estavam ou não capacitados em igualdade de circunstâncias com os restantes. Mas esta era a situação recorrente.
Pela primeira vez, através desta proposta, o acesso ao ensino superior aparece como exclusivo de um único percurso, e em dois sentidos: não só este percurso tem como objectivo primordial o acesso ao ensino superior, como os restantes percursos parecem desvincular-se dessa finalidade, que parecia ser o objectivo generalizado do ensino secundário. Esta é a primeira diferença.
Uma segunda novidade, que de alguma forma poderá ser lateral a esta questão mas me parece igualmente interessante, é que, pela primeira vez, a orientação para o mercado de emprego faz-se não na base de uma suposta carência de quadros médios, como acontecia na década de oitenta, mas sim com o intuito de responder a orientações, interesses e capacidades que não encontram resposta na outra via. Sendo assim, se calhar devíamos perguntar-nos o porquê de uma via que prepara exclusivamente para o ensino superior.

P - Há quem entenda que a concretização dos objectivos próprios do ensino secundário exijam uma maior autonomia deste em relação aos outros graus de ensino, ou seja, tornar as escolas secundárias exclusivamente secundárias. Concorda?

R - A minha perspectiva vai um pouco de encontro à ideia defendida pelo professor Eurico Lemos Pires, que julgo continuar a ser válida, ao preconizar dois tipos de articulação entre os diferentes tipos de ensino.
Ele afirmava que aquilo que caracteriza uma escola - que ainda não se tinha constituido como uma escola de massas e que, consequentemente, ainda não se tinha democratizado - é o facto de cada nível de ensino se organizar tendo como referência as exigências dos níveis de ensino seguintes, o que significa que o percurso entre os diferentes níveis era feito no sentido de um progressiva inflexão e estreitamento da selecção da população escolar, ou "sequencialidade regressiva", como ele denominava.
Dizia também o professor Lemos Pires que a constituição de uma escola alargada de massas implica que cada ciclo se organize através de uma sequencialidade face ao ciclo anterior. Esta articulação seria muito mais consentânea com o objectivo de desenvolvimento do percurso escolar dos alunos.
Penso que esta reflexão continua a ser importante para se pensar a articulação entre os diversos sectores de ensino. Continuo a achar que cada ciclo deve organizar-se para desenvolver e aprofundar aquilo que foi o percurso do nível anterior. Claro que não é aquilo que se verifica actualmente em termos de articulação entre o ensino básico e o secundário, e muito menos entre o secundário e o superior. De facto, considero só ser possível alargarmos a faixa de população abrangida por requisitos de exigência cada vez mais elevados se cada ciclo tiver o anterior como referência.

P - A ideia que perpassa é a de um ensino secundário "encalhado" entre os níveis de ensino anteriores e o ensino superior. Concorda?

R - Sim, sobretudo se pensarmos na via de prosseguimento de estudos. Dá ideia que criamos um percurso educativo unicamente com esse objectivo.

P - O actual esquema de formação de professores está adaptado para responder a algumas das exigências contidas na nova proposta? Será de algum modo necessário revê-lo e readaptá-lo?

R - Não creio que tal venha a ser necessário. Apesar desta nova proposta prever um certo grau de especialização nos cursos tecnológicos, não creio que haja necessidade de alterar as práticas de formação. Claro que o facto de ser necessário organizar esquemas de formação em contexto de trabalho e de proporcionar novas especializações irá exigir algum esforço às escolas, mas num âmbito específico. Podíamos era discutir até que ponto as escolas estarão em condições de corresponder a este esforço e se ele não seria melhor aproveitado tendo outros objectivos como meta.

P - Como última questão, que ideia gostaria de deixar para o debate que se segue?

R - Acho que valeria a pena questionar porque motivo existe tanta dificuldade em generalizar uma modalidade de ensino secundário que possa ter como base um curriculo comum. Claro que quando falo em curriculo comum não me refiro a um curriculo único, nem a um curso único.
Mas qualquer um fica perplexo ao verificar que, após termos percorrido algumas experiências de expansão onde a solução adoptada sempre tendeu para a institucionalização de percursos estratificados - exceptuando talvez um breve período nos anos sessenta, setenta, durante os quais houve uma tentativa de aproximação dos percursos -, tendo como resultado a hierarquização de percursos e saberes e diminuindo o potencial de democratização da escola, se venha apresentar um modelo que pouco difere deste que acabei de referir. Esta é uma solução velha.
Temos uma população escolar muito heterógenea, para a qual não temos conseguido propôr mais do que um curriculo extremamente estreito do ponto de vista das referências, extremamente academizado, teórico, abstracto, estreito do ponto de vista dos conhecimentos sociais e culturais que proporciona. E esta é uma questão com a qual temos de nos confrontar.
Porque temos sido tão incapazes de o alterar? O principal obstáculo, na minha opinião, é o facto de o ensino secundário na europa guardar ainda muito da sua marca de ensino reservado para um pequeno grupo, reservado a percursos orientados para uma faixa muito restrita de população escolar e de ocupações. É esta marca de exclusividade, de reserva, que não temos conseguido ultrapassar. E quer-me parecer que esta proposta, mais uma vez - ou mais do que outras, inclusivamente - expressa esta orientação.
Outra nota que considero igualmente importante de questionar é o porquê de se apostar tão significativamente no ensino profissional quando sabemos da precaridade existente no mercado de trabalho. Parece que quanto menor é a taxa de emprego mais se prepara para o emprego. A aposta no ensino profissional tinha lógica numa época de pleno emprego. Porque parece tão importante preparar para um emprego que não existe? Penso que será igualmente importante discutir esta questão.
E nesse sentido, o debate que antecedeu esta proposta foi um pseudo-debate. Não se discutiram alternativas, nem pressupostos, nem este tipo de questões. Estamos a falar de um nível de ensino que assume uma função muito importante na vida dos jovens.

Entrevista conduzida por Ricardo Jorge Costa


  
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Edição:

N.º 88
Ano 8, Fevereiro 2000

Autoria:

Fátima Antunes
Univ. do Minho
Fátima Antunes
Univ. do Minho

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