Página  >  Edições  >  N.º 87  >  Uma Reforma sem Princípio nem Fim?

Uma Reforma sem Princípio nem Fim?

A proposta de revisão curricular do ensino secundário actualmente em debate aparece, formalmente, como um documento actualizado no que respeita aos princípios e conceitos dominantes em termos da investigação na área, ao mesmo tempo que procura dar resposta a um conjunto de preocupações correntes no senso comum. Assim poderão ser olhadas as grandes linhas de força que inspiram a ductilidade do esquema de avaliação proposto bem como a flexibilidade que percorre a construção dos planos de estudos e a gestão dos tempos escolares. Embora algo polémica, a tentativa de uma tipificação mais clara dos cursos gerais e dos cursos tecnológicos procura viabilizar, por seu turno, uma saída para os impasses da vida com que se confrontam os jovens e proporcionar a formação dos quadros intermédios com que se defronta o país de há uns anos a esta parte. A existência de uma componente de formação geral comum serve para assegurar a partilha de um conjunto alargado de referências de formação e do direito de acesso ao ensino superior. Assinale-se ainda a preocupação com o incentivo ao exercício da autonomia curricular das escolas e a inclusão de uma área de projecto com a intenção de incentivar a transdisciplinaridade e os métodos de trabalho inovadores e responsabilizantes. Pelo seu carácter aparentemente inovador e razoável não poderemos deixar de estar de acordo com a generalidade da proposta.
Já se nos levantam as maiores dúvidas quanto àquelas que nos parecem ser as suas omissões, superficialidades e distorções decorrentes de faltas graves de enquadramento nos itinerários do ensino.
Antes de mais, o esforço de caracterização dos fundamentos dos cursos tecnológicos e dos cursos gerais não nos esclarece suficientemente sobre a abertura que os primeiros efectivamente dão a uma eventual frequência do ensino superior, ao mesmo tempo que as saídas implícítas nos segundos consagram uma visão dominantemente universitária desse ensino. Uma tal redução, reconheça-se, é proporcionada pela própria evolução interna do ensino politécnico que, em Portugal, numa ânsia de dignificação social pouco criteriosa, parece não conseguir escapar à sedução do paradigma universitário. Claro que uma revisão curricular atomizada do ensino secundário, como esta, corre, em tais circunstâncias, o grande perigo de absorver e potenciar até os erros do contexto em que inevitavelmente se situa.
Na verdade, o grau de especialização e de profissionalização presente nos cursos tecnológicos, sem prejuízo de favorecer o objectivo de uma imediata inserção no mundo do trabalho, deveria proporcionar também, de facto, uma preparação adequada à prossecução de estudos em formações superiores de curta duração e de carácter iminentemente prático que teriam de constituir, entretanto, a essência do ensino politécnico. Se a jusante do secundário existisse essa coerência institucional, a distinção entre cursos gerais e tecnológicos obedeceria a uma outra lógica e a uma outra dinâmica e nunca àquela que, por inércia, se pensa ser a linha de separação entre o mundo do trabalho e o ensino superior e que, ao contrário do que retoricamente se afirma no documento em causa, acaba por determinar e submeter o conjunto das reformas esboçadas.
Aliás, os erros decorrentes do carácter algo extemporâneo desta revisão curricular surgem igualmente da relação, não assumida, do ensino secundário com o ensino básico. O elevadíssimo número de retenções que caracteriza o choque actual dos alunos quando chegam ao secundário será resolvido com as alterações agora consignadas? Tememos sinceramente que não por duas ordens de razões fundamentais: uma reporta-se aos objectivos de sucesso escolar generalizado (que não necessariamente educativo), os quais têm inspirado um ensino básico que, em nome desse sucesso, tem dificuldades em promover o desenvolvimento das capacidades de abstracção que o conhecimento científico - explicitamente consagrado pelo ensino secundário - exige; a outra razão prende-se com a relação muito pouco nítida que o jovem - por tabus de natureza vária - mantém com o mundo do trabalho no âmbito do ensino básico e que, nomeadamente, os cursos tecnológicos vêm depois colocar na primeira linha das suas preocupações. Realce-se, entre outros aspectos, o risco de uma estigmatização a priori das formações mais profissionalizantes e o seu consequente esvaziamento.
Um certo jogo de palavras patente no texto em debate, e que serve para definir a articulação e o carácter terminal do ensino secundário, é um jogo arriscado porque permite que se dêem saltos sobre problemas incontornáveis, saltos esses que se poderão vir a revelar insensatos.
Receamos que, nestes pontos cruciais, esta reforma obedeça arbitrariamente a compartimentações burocrático-administrativas, bem como a uma certa auto-suficiência epistemológica, completamente estranhas ao universo real - pedagógico, social e pessoal - dos alunos.
Nem tudo, nem tão pouco. Não se corra agora o risco de mudar o suficiente para que tudo venha a ficar na mesma.

Adalberto Dias de Carvalho
Professor da Faculdade de Letras da Universidade do Porto


  
Ficha do Artigo
Imprimir Abrir como PDF

Edição:

N.º 87
Ano 8, Janeiro 2000

Autoria:

Adalberto Dias Carvalho
Fac. de Letras, Univ. do Porto
Adalberto Dias Carvalho
Fac. de Letras, Univ. do Porto

Partilhar nas redes sociais:

|


Publicidade


Voltar ao Topo