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"Todo o Tempo do Mundo"

A versão integral da comunicação que António Nóvoa apresentou na Universidade de S. Paulo (e que me chegou por mão amiga) é um documento de leitura obrigatória. Louvo a coragem do autor e a inclusão da síntese da comunicação num número recente deste nosso jornal.

Porém, a síntese publicada não reflecte a riqueza do texto. O documento integra quatro denúncias, que sugerem múltiplos caminhos de reflexão. Pegar-lhe-ei pela terceira na ordem do texto de António Nóvoa, a que tem por título "Do excesso do discurso científico-educacional à pobreza das práticas pedagógicas". (1)

"Quanta gente existe por aí, que fala muito e não diz nada?! (2)

Avanzini, num excelente prefácio a uma obra de Meirieu (3) evoca Durkheim, que terá afirmado que "a pedagogia não passou, muitas vezes, de uma forma de literatura utópica". Mas, já há um quarto de século, outros autores confirmavam que "o mundo dos métodos de ensino e o dos processos de aprendizagem estão ainda separados" e que "a forma como o professor ensina ainda não foi relacionada com a forma como o estudante aprende". (4)

Como explicar que, num tempo de profusa produção teórica, os professores mantenham as suas práticas ancoradas em "conhecimentos superficiais que acarretam quase automaticamente comportamentos livrescos repetitivos ou redutores"?. (5) "Uma das realidades mais importantes das duas últimas décadas é o desenvolvimento extraordinário do campo universitário da pedagogia e/ou das ciências da educação. Hoje em dia, há milhares de investigadores nesta área, que produzem uma quantidade impressionante de textos, documentos, pesquisas, revistas, congressos, cursos, etc. Em grande parte, esta comunidade científico-educacional alimenta-se dos professores e legitima-se através de uma reflexão sobre eles." Mas, como acrescenta António Nóvoa, "não deixa de ser estranho que, numa época em que tanto se fala de "autonomia profissional" ou de "professores reflexivos", se mantenha a "pobreza actual das práticas pedagógicas, fechadas numa concepção curricular rígida e pautadas pelo ritmo de livros e materiais escolares concebidos por grandes empresas."

Eu acrescentaria que até mesmo a recente euforia da introdução das novas tecnologias de informação e comunicação nas escolas pode vir a concorrer para a sedimentação de tais práticas. As escolas poderão continuar a ser palimpsestos nos quais os registos primitivos não se apagaram. As escolas poderão manter-se indiferentes aos dados fornecidos pela investigação educacional, alheias às conclusões dos estudos, avessas ao discurso das Ciências da Educação.

Uma academia ancilosada

"É verdade que existe, no espaço universitário, uma retórica de "inovação", de "mudança", de "professor reflexivo", de "investigação-acção", etc.; mas a Universidade é uma instituição conservadora, e acaba sempre por reproduzir dicotomias como teoria/prática, conhecimento/acção, etc. A ligação da Universidade ao terreno (curiosa metáfora!) leva a que os investigadores fiquem a saber o que os professores sabem, e não conduz a que os professores fiquem a saber melhor aquilo que já sabem."

Conclui o autor que "a estratégia de desapossar os professores dos seus saberes serve objectivos de desenvolvimento da carreira dos universitários, mesmo que se legitime com o argumento de que serve para o desenvolvimento profissional dos professores." Para que não se presuma uma intenção de generalizar, direi que há "universitários" e universitários, que há "professores" e professores, e que eu convivo com alguns que me habituei a respeitar (sem qualquer intenção laudatória...).

Este "desapossar" de instrumentos de reinterpretação e transformação não decorre apenas de uma redundante produção teórica, processa-se precocemente na formação dos professores. Nesta, uma inútil teorização de teorias coabita com as misérias das "práticas pedagógicas" e dos estágios, autênticos tratamentos de polé a que se submetem os candidatos a professores e os padecentes probatórios. Ressalvadas as eventuais excepções, a formação dos futuros professores ainda assenta na imitação de aulas obsoletas "clones" das que lhes foram servidas desde os bancos da "primária" até aos anfiteatros de uma "academia ancilosada".

Da perversões às interrogações

Ao leitor que ousou chegar até aqui deixarei um T. P. C. com o qual, à míngua de um melhor modo de passar o tempo, poderá entreter-se durante o período de "interrupção de actividade lectiva" deste Natal. (6) São perguntas dispersas mas de algum modo relacionadas com as considerações que as precedem. Com esta proposta de reflexão natalícia deixo crentes e não-crentes com os meus votos de um bom Natal.:

Para que serve investigar, se os estudos raramente ultrapassam o simples propósito de promoção académica dos seus autores? Porque se atafulha as bibliotecas das universidades com inertes exercícios de erudição para consumo interno? Que direito assiste aos "teóricos bizantinos" de invadirem o terreno dos "praticistas militantes", se estes se confinam ao papel de um objecto que se usa e deita fora? De que serve disponibilizar tantos e tão abalizados estudos se aqueles a quem se dirigem os desprezam ou até mesmo os ignoram? Porque se insiste em investigações de circuito fechado (frequente e paradoxalmente) associadas a práticas de formação feitas de saliva e acetato?

São interrogações para as quais nunca encontrei resposta mas que continuo a fazer a mim próprio, em cíclicos regressos e na certeza de que (um dia!) todos os segredos se hão-de desvendar. Temos todo o tempo do mundo... não tenhamos pressa.

José Pacheco
Escola da Ponte/Vila das Aves

1 As citações do texto de António Nóvoa surgem em itálico.
2 António Carlos Jobim, in "Desafinado"
3 Meirieu, Ph. (1998) Aprender... sim, mas como? Porto Alegre, ARTMED
4 Gage & Berliner (1975) Educational Psycology, Chicago, Rand Mc Nally College Publishing, Cº, p. 450
5 Jean, G. (1990) Cultura pessoal e acção pedagógica, Porto, Ed. ASA, p.95
6 "Interrupção da actividade lectiva", como todos os professores sabem. Não "férias de Natal" como, há dias, escrevia um jornalista.


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 86
Ano 8, Dezembro 1999

Autoria:

José Pacheco
Escola da Ponte, Vila das Aves
José Pacheco
Escola da Ponte, Vila das Aves

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