(Por um manifesto de um outro Porto 2000 e tal)
No passado longínquo da Idade Média, o príncipe conduziu os desígnios desta cidade. O desenho urbano foi condicionado pela vontade do poder aristocrático em hierarquizar edifícios do trono e da igreja em relação ao resto do território. E a muralha segregou para fora da urbe os excluídos da judiaria e os camponeses famintos. Mais tarde a cidade expressou outra conflitualidade. O trono, a igreja e o mercado partilharam espaços que definiam novos interesses das classes dominantes. O militar Almada criou, nesta cidade do Porto, praças. Alongou novas vias e construiu quartéis para esmagar revoltas doutras classes que buscavam um desempenho na história. No capitalismo industrial, o poder político-militar disfarçou-se várias vezes. Com farda ou sem ela, foi engenheiro ou arquitecto. A cidade foi rasgada para dar lugar à locomotiva que veio trazer o símbolo do industrialismo até S. Bento, bem no coração da cidade Novas fachadas deram prestigio à nova classe dominante. Infraestruturaram-se dispositivos que reproduzissem o estilo de vida, os hábitos e os consumos necessários ao lucro e desejo de dominação. O novo poder da ditadura de Salazar, amordaçou a cidade com novos quartéis e sobretudo plasmaram-se os signos do poder totalitário vigilante e repressivo. Aprofundavam-se as desigualdades e reprimiam-se revoltas. As lutas sociais, as inovações tecnológicas, a inexorável marcha da história, não permitem "paradigmas" estáticos e eternos. Depois do sobressalto revolucionário do 25 de Abril, a burguesia moderna, apoiada em tecnocratas astutos, substitui a ditadura por neo-liberalismo. Os tentáculos urbanos cresceram sugando homens e recursos naturais. E a nova megapólis tornou-se ainda mais vorazmente consumista, nestes últimos anos de eurocratas. Excluiram-se para os subúrbios os mais desfavorecidos. Surgiram novas desigualdades no território e na sociedade. A megapólis foi poluindo e envenenando os cursos de água e a atmosfera da cidade. E, como um cancro maligno, a malha urbana foi-se multiplicando em metástases pelo território. O cavaquismo acelerou a concentração dos mais poderosos em novos pólos citadinos. O processo não foi pacífico. Durante os primeiros anos após o 25 de Abril, surgiram consciências populares que acordaram para a conquista do direito de cidadania. Uma consciência ecológica crescente foi-se assumindo em gestos cada vez mais consequentes. Mas a voragem duma modernização guterrista iludiu as aspirações. Uma nova etapa deste paradigma, com diferenças mas ainda com génese comum, começara. Um processo mais vasto de interesses monopolistas vai assumindo a expressão do poder político. A globalização nada mais é do que a geopolítica dos novos interesses da burguesia monopolista. São interesses que extravasam os limites nacionais para referenciarem uma estratégia internacional em função do domínio dos mercados mundiais. A região do Porto é a "metapolis" fragmentada sobre este litoral do norte. Retalhado em subúrbios e novos núcleos urbanos, já não serve estes novos desígnios monopolistas. É preciso regular concorrências regionais e sobretudo regular conflitualidades entre vários países europeus, no sentido de homogeneizar uma estratégia com maior coerência e eficácia na economia super-moderna que já está em marcha. Eis a nova geopolítica dos interesses monopolistas europeus, cuja expressão política é a união europeia em busca de produtivismos e competitividades no assalto a novos mercados. O sistema de regulação territorial passa agora por modelos de metropolização. Eis o que se veio discutir no Porto nos dias 12 e 13 de Novembro de 1999, originando uma carta magna da cidade. Á mistura com vagas referencias ambientais que são hoje apanágio de todas as discussões que se pretendem com boa consciência, definiu-se a estratégia: equilibrar competitividades regionais" e "requalificar" o território com novos dispositivos mais adequados à geopolítica do poder, cada vez mais concentrados num punhado de super monopólios que todos os dias se vão fundindo, em grupos mais concentrados ainda, para que as concorrenciais não venham a explodir em conflitualidades endógenas. É a geopolítica destes monopólios. O plano de interesses comuns no domínio e exploração de maneira a que se traduzam no território novos dispositivos logísticos. Nesta cruzada pretende-se a espoliação dos países da periferia, ou seja a África, a América Latina e a Ásia. Os dispositivos urbanos são os aeroportos, os tecnopólos de investigação (centros de estratégia militar e centros de formação universitária), as estruturas de produção mediática, compreendendo os sistemas televisivos e cibernéticos e novos sectores de produção biotecnológica e agro-industrial com vista à produção de alimentos transgénicos de maneira a impôr a dominação completa dos povos periféricos à metropolização mundial. Os dispositivos da metrópole são ainda os centros comerciais e os centros de diversão de massas como os estádios de futebol, no desígnio de acomodar e alienar. Interessa recordar porém, como vimos, que ao longo de todo o processo da história, os antagonismos sociais ateavam o fogo sobre impérios que pareciam nunca mais ruir e novas mudanças se vieram a produzir. Por enquanto, o cenário que nos propõem é apenas a terapêutica, paliativo ou panaceia para apenas erradicar sintomas mas não para criar verdadeiramente uma sociedade saudável. Essa terapêutica é a ilusão mirífica de pertencermos a este novo império que muitos pensam ser imprescindível para uma longínqua cruzada de ajudar os outros a sairem do "subdesenvolvimento" em que se encontram. Este discurso ilusório que ouvimos da internacional socialista de Blair, Guterres ou de Chopin, esconde a real causa da desigualdade entre os povos. No modelo civilizacional em que vivemos, feito de lucros extraídos da exploração do trabalho dos outros, da opulência e domínio de uma minoria sobre uma larga maioria de espoliados, duma civilização baseada numa técnica de esbanjamento e consumo energéticos fósseis que destrói e polui cada vez mais a natureza, a riqueza de uns faz-se aumentando a pobreza e exclusão dos outros. O subdesenvolvimento duns resulta no crescimento doutros. Daí que só se pode acabar com as desigualdades através do desenvolvimento ecologicamente sustentável, com vista à auto-gestão social, capaz de criar uma sociedade saudável. Em termos territoriais isso levaria à recusa das metropolis cujo significado é claramente definidor duma geopolítica de hierarquia (a metrópole é a cidade mãe donde partem os exércitos e os colonizadores). Com a proposta para a cidade do Porto - capital europeia da cultura, 2001 - surgem as oportunidades para a referida terapêutica da metapolis fragmentada, chamada área metropolitana do Porto Porém os geopolíticos dividem-se: - Nuno Portas, na esteira do neo-liberalismo, acalenta ainda o sonho duma metapolis difusa ou confusa em que a disseminação urbana ganharia contornos espontâneos. Este ex-urbanólogo de Vila Nova de Gaia, esconde por detrás dum discurso de sedução pós-moderna não directivista, uma realidade económica bem dirigida. Devido às oportunidades desiguais em relação aos meios produtivos e à propriedade do solo, esse não directivismo urbano é a caça selvagem do mais forte aos ingénuos "papalvos" sem estratégia. - Outros defendem claramente o "plano de ordenamento territorial" como estratégia para instaurar a tal metrópole regulando as contradições secundárias que possam embaraçar os novos dispositivos mais eficazes ao paradigma regulador em consonância com a globalização dos interesses monopolistas. No actual momento considerem-se ainda outras contradições menores que se imbrincam no contexto e que finalmente decorrem duma estratégia de arranjo e regulação do actual sistema de metropolização. - Manuel Carrilho e Ricardo Pais são a expressão da cultura de espectáculo do fogacho narcísico em que se pavoneiam estrelas dum exibicionismo consumista e de "entretimento". - Os defensores da "requalificação urbana" preferem, ao foguetório do espectáculo, o fachadismo edulcorado do território para aí surgir o cenário dos tais dispositivos essenciais à reorganização territorial da nova metropolis. - Onde está a expressão deste outro Porto, vontade política daqueles que sofrem a exclusão? - Onde está a cultura de cidadania para uma vida autónoma e participada na polis? - Onde está essa requalificação urbana para acabar com as casas degradadas dos bairros pobres? - Onde está um plano para criar uma cidade com espaços públicos que permitam uma integração entre a natureza, o paisagismo, a arquitectura, o urbanismo e a arte? - Onde está um plano onde se possam construir protótipos ou até construções públicas com fotopilhas ou outros sistemas de energia renovável para que diminua a poluição e a dependência? - Onde está um plano que permita despoluir águas usadas e revalorizar os percursos de água? O plano não poderá resultar dos interesses dos "notáveis" que constituem a comissão para o Porto 2001. Terá que nascer um plano assente nos anseios dos que vivem a raiva contida nesta cidade poluída, nos bairros degradados, no desespero dos excluídos. O urbanismo não tem de ser instrumento dócil do poder económico. As novas relações sociais e a tomada de consciência provocada pelas lutas urbanas, em torno dos espaços públicos e do ambiente, trazem uma nova dinâmica. Exigem um novo conceito de urbanização. É que o urbanismo não é uma disciplina analítica. É um corpo transdisciplinar onde a morfologia territorial não é feita apenas de casas, pontes ou redes viárias. A morfologia urbana pode tornar-se " paisagem global" quando, para além da arquitectura e engenharia, surgem espaços públicos de socialização e sustentabilidade através da natureza tornada parte integrante do espaço construído. Para isso, impõe-se uma nova estratégia cultural e de desenvolvimento. A grande oportunidade de se fazer do Porto uma cidade singular e criativa não está nesse provincianismo de novo-rico, no elitismo cosmopolita em construir mais umas fachadas de luxo ou mais cenários efémeros de mórbidos espectáculos. Só grandes determinantes estratégicas podem permitir que o Porto se torne numa cidade exemplar. Em vez de fachadas de betão é necessário o desenvolvimento ecologicamente sustentável. - Introduzir "continuuns verdes" na malha da cidade;
- Desenvolver jardins e parques funcionais, interligados em múltiplas funções: Estabelecer processos de purificação biológica de águas residuais, renaturalização de antigos cursos de água, bioclimatização urbana com a arborização, sistemas de energias renováveis, parques naturais com hortas urbanas, municipais ou associativas reutilizando e reciclando lixos orgânicos.
- Organização viária, dando prioridade aos peões e propondo uma rede de transportes públicos ecológicos energia eléctrica, solar, etc.
- Mini-centrais de energias renováveis integradas - eólica, solar, hídrica, etc.
Estes são os dispositivos ecotécnicos necessários para uma alternativa profilática desta cidade doente. É necessário repensar a cidade de maneira a serem eliminados espaços de exclusão e promovendo a descentralização territorial articulando actividades multifuncionais. Sei que poucos dos "notáveis" da comissão Porto 2001, darão atenção ao que aqui escrevi. Mas, já que está crescendo uma onda de consciência ecológica e ambiental nas populações, talvez possa surgir por aí uma pro-urbe a favor de um Porto 2001 mais solidário, mais ecológico e menos consumista. Assim, um dia, o Porto não será metropolis. Talvez então possa tornar-se uma ecopolis! Este texto á apenas uma contribuição para um manifesto de luta e de esperança para um outro Porto 2000 e tal!! A. Jacinto Rodrigues (Professor Universitário) F.A.U.P. - Faculdade de Arquitectura/Universidade do Porto
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