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Isabel Baptista em Entrevista a "A Página"

 

Os saberes actuais são sempre verdades muito provisórias

Professor é muito mais do que mero ensinante

 

Durante a entrevista, apercebeu-se que o candidato a mestrando era da terra dela. E que tinha uma dívida de gratidão, antiga, para com um professor - o professor Baptista - que o candidato estava longe de identificar como pai dela. O candidato a mestrando dizia que jamais teria passado de guardador de rebanhos sem o apoio daquele professor da escola primária. E isto justificava a certeza na escolha do tema para dissertação de mestrado - algo em torno do sucesso escolar, das dificuldades de aprendizagem, da responsabilidade que a sociedade tem, relativamente à Educação, fora dos muros da escola.

"Guardador de rebanhos" é expressão quase literária. MR, hoje a fazer doutoramento, teria dito pastor, no tempo em que frequentava a escola do professor Baptista. Mas sem aquele apoio, sem a insistência deste primeiro mestre (mestre-escola, mais do que mestre-escola, mestre como os pintores e os escultores), MR não cresceria amparado - como uma planta amparada pelo jardineiro - nem chegaria a mestre, quase doutor. O professor Baptista tinha, certamente, essa concepção de professor jardineiro que hoje as Ciências da Educação consagram. Não foi por acaso que também foi vinicultor de sucesso.

Ela, hoje no papel de entrevistada, é Isabel Baptista. Baptista com "p". P de Professora. Professora da formação de educadores, para quem aquela expressão "professor-jardineiro", usada pelo jornalista, está longe de corresponder ao que entende. "Ser educador é alguém que está a intervir intencionalmente no processso de desenvolvimento de outra pessoa", diz sublinhando que essa ideia de uma intervenção intencional e devidamente planificada é contrária a uma ideia que já existiu em pedagogia, segundo a qual o professor se limitava a regar a flor que desabrochava.

Esta aceitação da inevitabilidade de uma constante relação entre a Educação e o Social é uma das heranças do pai, o professor Baptista, de Antas, Viseu, que acarinhava os meninos pobres, dando-lhes explicações extra e preparando-os para o exame de admissão? Dele herdou também o gosto pela profissão de educadora.

Hoje, Isabel Baptista é investigadora dedicada às questões da Ética na Educação (tema de mestrado) e está a doutorar-se em Filosofia. Na Universidade Portucalense lecciona Pedagogia Social, Educação para o Desenvolvimento e Organização e Desenvolvimento Curricular nos Ramos educaciuonais? Na Faculdade de Letras da Universidade do Porto integra um gabinete de Filosofia da Educação (coordenado pelo professor Adalberto Dias de Carvalho) que desenvolve um projecto de investigação sobre direitos humanos e Educação.

"Uma das mais valias que tenho em termos profissionais é ter começado pela Escola do Magistério Primário e ter sido professora do 1º ciclo durante 5 anos", reconhece Isabel Baptista. Fez-se professora há 20 anos. Pertenceu à famosa geração pedagógica das Escolas do Magistério Primário, daqueles anos de ouro para a sensibilização pedagógica que se seguiram ao 25 de Abril. "Quase Todos os meus colegas desse tempo continuam hoje ligados activa e criticamente à profissão", testemunha.

"Dentro deste conceito novo de Educação (que já não deve ser tão novo), preconizado pela UNESCO para o século XXI, de uma Educação durante toda a vida e para todos, o professor já não é só o ensinante de uma determinada matéria, de uma determinada disciplina, de um determinado sector de ensino, é um educador. Há um novo conceito de Educação, bastante mais vasto, assente naqueles pilares que a UNESCO sintetizou: aprender a aprender, aprender a ser, aprender a viver com os outros, aprender a fazer"?

"Hoje os professores já não podem ser apenas ensinantes de uma disciplina. Hoje são professores da escola. São professores educadores? Neste aspecto, os professsores do 2º e 3º ciclo e do secundário têm muito que aprender com os professores do 1º ciclo e com os educadores de infância, em termos de desenvolvimento de uma nova mentalidade curricular É que aprender a ser significa, hoje, aprender a ser autónomo, aprender a ser capaz de compreender o mundo em que vive e tomar decisões cobre o futuro. Para isso a escola terá que fornecer certas ferramentas.

Ao falar (apaixonadamente) sobre Educação, Isabel Baptista faz e desfaz novelos de conversa cuja riqueza vale também pela variedade de um encontro quase de café, como devem ser algumas entrevistas: " Esta ideia de Educação durante toda a vida e para todos surge de um pressuposto novo, segundo o qual se reconhece hoje um papel diferente da Educação no desenvolvimento humano. Durante muito tempo acreditava-se que o desenvolvimento assentava, fundamentalmente na questão económica. Hoje reconhece-se que a Educação não é apenas um factor mas o factor determinante no processo de desenvolvimento das pessoas e das comunidades".

"Claro que isto exige outro tipo de professor, com outra mentalidade curricular. Tradicionalmente, o professor respondia perante uma mentalidade curricular muito estrita, era um mero transmisssor, um intermediário de um determinado saber. Ainda há quem confuda, hoje, currículo com programa. Programa é apenas uma parte do currículo. Hoje até a atitude do aluno face à escola, se gosta ou não dela, é importante para o seu desenvolvimento pessoal , social e para o seu rendimento académico".

Essa tal relação entre a Educação e o Social, que foi prática pedagógica do pai, está crescentemente presente. Uma Educação para todos e durante toda a vida exige-o. Exigência que também deita por terra velhas concepções educativas que ainda são referência, seja na sinceridade e ingenuidade de alguns discursos, seja no imobilismo de posturas conservadoras e elitistas.

"A terceira classe de antigamente é que valia. E valia. O que se aprendia naqueles três anos de escola ainda funcionava, passados 20 ou 30 anos, em termos de competências sociais e profissionais. Hoje já não funciona. Um doutoramentro, por exemplo, deve ser princípio de um novo processo de aprendizagem? Na era tecnológica em que vivemos os saberes são sempre verdades provisórias"?

"Se importa treinar a memória? Claro que sim, o facto de ter sido usada em exclusividade na escola tradicional não quer dizer que não tenha de continuar a ser treinada. Mas quando hoje falamos em memória fazêmo-lo num duplo sentido, o da competência cognitiva e o da memória social, da importância da história, da necessidade de enraizamento numa cultura e numa tradição. É a partir daqui que se pode entender a ligação ao ideal de universalidade consagrado na Declaração Universal do Direitos do Homem de 1948"?

"Confesso que não contava com uma entrevista assim, a abrir com referências tão pessoais. Mas o rumo da conversa não me desagrada. Hoje a dimensão pessoal, em termos de identidade profissional docente, a dimensão pessoal e a dimensão profissional cruzam-se sempre. (?) Não esqueçamos que a actividade educativa é muita complexa do ponto de vista humano, o educador está a intervir na formação de outra pessoa Já houve tempos em que a sociedade apresentava um modelo de homem e, então, os professores sabiam o sentido da formação que ministravam? Hoje a Educação tem de contribuir as possibilidades de escolha das pessoas, a sua capacidade par decidir, mesmo num mundo de incertezas. Podemos não saber onde vamos chegar mas temos de saber para onde queremos ir (?) por isso eu insisto, nas minhas aulas, na necessidade de consciencializar que ao nível da vida profissional do professor há uma dimensão ética muito grande".

"Ética? Ética é uma filosofia sobre a moral, sobre o que nós entendemos que é o bem, que é o justo? Moral é o que entendemos que é obrigatório. Que tipo de comportamentos é que são correctos de acordo com o que entendemos que é o justo e que é o bem. A deontologia é a moral profissional, é o comportamento considerado profissional correcto? Eu defendo que, na formação de professores, a questão da ética tem uma importância decisiva no processso de desenvolvimento de um pensamento reflexivo. E nesse sentido, defendo o primado do ético sobre o deontológico? Dou um exemplo, que poderá fazer um educador social, a desenvolver um trabalho de rua, com um grupo de jovens, se a polícia o confrontar com a certeza de que há alguém a vender droga no grupo? Pode denunciá-lo, caso já o tenha identificado? E se o fizer, pode continuar o trabalho com o grupo de jovens ? Independentemente das técnicas que domine, das regras que orientem o seu trabalho, o educador terá sempre que decidir em situação.

"Educador Social? Da mesma forma que outros educadores possuem, para lá de um saber pedagógico comum, habilitações próprias para o exercício da sua actividade profissional em determinados domínios ou sectores de ensino, os educadores sociais estão especificamente preparados para desenvolver uma acção educativa em espaços socio-comunitários. Nestes espaços, o seu desempenho profissional cruza-se, inevitavelmente, com o de outros intervenientes na área do trabalho social. A identidade dos educadores sociais desenvolve-se assim num duplo movimento de aproximação/demarcação relativamente quer aos educadores-professores quer aos trabalhadores sociais. Se com os primeiros partilham a referência ao saber pedagógico, com os segundos partilham a referência ao mesmo terreno de intervenção."

Educador social foi, avant la lettre, o professor Baptista, de Antas, Viseu, pai de Isabel Baptista. Estaria esta professora universitária a pensar no pai quando, há pouco, nestas mesmas páginas, lembrava que para concretizar a meta de uma educação para todos, não basta lutar por uma escola mais inclusiva, ainda que esta seja uma batalha decisiva no combate à exclusão social?

"É preciso sim reequacionar o papel da educação escolar, mas também o da educação extra-escolar e, sobretudo, o da articulação entre ambas. De acordo com os ideais humanistas e democráticos que norteiam o nosso esforço, não podemos, em termos de educação, ignorar o número crescente de pessoas que vivem privadas das condições de vida mais elementares. Privadas dos seus direitos no que diz respeito à saúde, à alimentação, ao trabalho e à educação. Privadas, enfim, do seu direito de cidadania..."

Tudo isto sem esquecer que a responsabilidade dos educadores é «finita». Não confundindo com outras lógicas, nomeadamente a assistêncial. Não confundido a a lógica humanitarista com a logica humanista que deve presidir à Educação.Trata-se afinal de conseguirmos todos (educadores e outros agentes, jornalistas incluídos) criar e alimentar os espaços de mediação necessários a uma socialização feliz.

Texto de João Rita
elaborado a partir de uma conversa com Isabel Baptista

Jornal a Página da Educação nº 86 - Dezembro de 1999, pg. 12


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 86
Ano 8, Dezembro 1999

Autoria:

Isabel Baptista
Universidade Católica, Porto
João Rita
Jornalista, Porto
Isabel Baptista
Universidade Católica, Porto
João Rita
Jornalista, Porto

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