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O Ensino Secundário não é uma Ponte entre o Básico e o Superior

Pessoas normalmente vindas do exterior ao campo educativo, sempre souberam "o que se deve ensinar" e como "ensinar como deve ser". O sucesso destes "especialistas" deve-se, em larga medida, ao facto de os professores, confrontados com uma prática profissional complexa, terem, naturalmente, muitas dúvidas sobre os caminhos a seguir. Dúvidas tanto maiores, quanto maiores forem os obstáculos à organização de colectivos de docentes, capazes de pensar o seu trabalho, e o contexto em que ele ocorre. Dúvidas que se avolumam, quando aceitamos trocar o tempo necessário para estudar/investigar/pensar por uma qualquer rotina burocrática, seja ela, o controlo das faltas dos alunos ou a elaboração de mapas, projectos ou outras bagatelas "pedagógicas", destinadas exclusivamente a amarelecer nas pastas de arquivo, ou a justificar o deambular deste ou daquele "inspector" e "especialista".
Nós professores estamos hoje obrigados a questionar e a pôr em causa as práticas de trabalho que nos querem impor.

Dizem as professoras Nilda Alves e Regina Leite Garcia: "Estamos convencidas de que a construção de uma escola de qualidade para os até agora excluídos passa pela tomada da palavra pelas professoras, historicamente impedidas de dizer a sua própria palavra, pois sempre aparece alguém para lhes «ensinar» como melhor ensinar, sempre aparece algum «iluminado» para lhes dizer o que devem fazer. Muda a denominação mas o espírito é sempre o mesmo ? tutelar as professoras, impondo-lhes o que lhes parece (aos que se sentem iluminados) importante ser ensinado e a melhor forma de fazê-lo. Após o lançamento badalado de pacotes, que se sucedem no tempo, seguem-se muitos seminários, palestras, consultorias, livros e artigos publicados pois, afinal, é preciso «capacitar as professoras» para o desempenho do papel que lhes destinam os que no momento detêm o poder. E também como sempre aconteceu, após o primeiro momento de euforia se segue o momento da desilusão ? não está dando certo ? e tudo continua como dantes. Pudera não? pois." (1)

Este relembrar de práticas costumeiras, socorrendo-me desta vez da autoridade da Nilda e da Regina, vem a propósito de umas coisas que ultimamente tenho ouvido sobre os "caminhos do secundário".
Andam por aí alguns a confundir objectivos e temáticas menores e transversais ao ensino, com aquilo que me parece continuar a ser fundamental: permitir pelo menos aos estudantes do secundário, algum acesso ao conhecimento técnico e científico. Não me sinto descansado enquanto souber que andam por aí uns "especialistas" a defender que o secundário deve fundamentalmente ensinar português, inglês, matemática disciplinas caldeadas por uma componente de formação ideológica ? religião ou educação cívica e "alguma coisa de sensibilização para o mundo do trabalho". Em resumo ensinem-se as três disciplinas "nobres" e distribua-se o caldo ideológico da pequena e média burguesia dominante. Na prática, estão a pedir à escola que responda ao fracasso da igreja e das empresas, depois de ter respondido ao fracasso da família!

Que se quer do Ensino Secundário?

Não fico tranquilo quando oiço falar de 4º ciclo em vez de secundário. Menos tranquilo ainda fico, quando vejo associar a designação de 4º ciclo a prolongamento do ensino obrigatório. Não me incomoda a alteração de nomes. Incomoda-me que não se discuta o que pode estar por trás dessas alterações de nomes. Por isso aqui ficam mais algumas questões: deve o ensino secundário ser considerado ensino de frequência obrigatória? Deve ser de oferta pública obrigatória para todos e todas ou também de frequência obrigatória? Deve o Estado obrigar os cidadãos de uma determinada idade a frequentar este ciclo de ensino ou deve ser obrigado a acolher todos os cidadãos, independentemente da idade, neste ciclo? Não nos obriga esta questão a repensar (em todos os ciclos e no ensino superior) a gratuitidade da oferta de formação para todos os cidadãos? Não nos obriga a pensar no que significa, em termos práticos, educação de adultos e educação e formação ao longo da vida? (...) Não nos obriga a repensar o que queremos do Ensino Secundário em Portugal?

Não sou dos que defendem que o Ensino Secundário deve ser uma ponte entre o Ensino Básico e o Superior. Não considero que a função do Secundário seja apenas "preparar para o ingresso no superior". Nem defendo que a este preparar para o ingresso, se lhe junte a responsabilidade de seleccionar os que entram e os que não entram. Nem que lhe dêem a outra responsabilidade de dar aos que não entram no superior, qualquer coisinha que os "prepare para a vida activa".
Penso que ao Ensino Secundário convém ter uma identidade própria e autónoma em relação ao que lhe está antes e depois. Convém que dialogue, em primeiro lugar, consigo próprio, e só depois com o ensino superior e com o mundo do trabalho. Por mim, quero partir para este diálogo necessário tendo como seguro, que o Ensino Secundário não é uma mera ponte nem um caminho entre o Ensino Básico e o Ensino Superior. Por isso recuso as reivindicações que não aceitando o pontão ou o caminho, reivindicam a ponte larga, a auto-estrada ou até o TGV. E é nisto que se resumem muitas das reivindicações, em nome da qualidade do ensino. O ensino de qualidade, não tem a ver com a largura e o traçado da estrada ou a imponência da ponte. Parafraseando o poeta, tem muito mais a ver com a capacidade de permitir que o caminhante faça o seu caminho, caminhando. E tem a ver com a política. Com o valor do trabalho. Com a remuneração do trabalho. Com a consideração social e a remuneração de diferentes formações, saberes e competências. (...) Com sabermos se a sociedade nos paga pelo que sabemos e pelo valor do que produzimos, ou se pelo diploma e certificado de habilitações universitárias que apresentamos.

Portugal continua atrasado em muitas coisas. Uma delas, é o facto de o mercado de trabalho continuar a pagar pelo certificado de habilitações universitárias que se possui, mesmo que tal certificado, nada mais certifique que um percurso de insucesso académico progressivo. Entre o saber viver e saber fazer certificado pelo ensino secundário ou politécnico, e um certificado de ignorância com carimbo universitário, ainda se prefere este último. Enquanto for assim, talvez a função do secundário seja a de ponte entre o Ensino Básico e o precipício do Ensino Superior. Particular e caro, de preferência.

José Paulo Serralheiro

(1) O sentido da Escola; Nilda Alves e Regina Leite Garcia (orgs.); DP&A, 1999.


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 86
Ano 8, Dezembro 1999

Autoria:

José Paulo Serralheiro
Professor e Jornalista. Director do Jornal a Página da Educação.
José Paulo Serralheiro
Professor e Jornalista. Director do Jornal a Página da Educação.

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