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Ainda a Passagem à "Fase da Teorização"

A questão aqui aflorada na última crónica merece ser retomada. Lembremos a expressão-chave, então invocada como pretexto para a reflexão, extraída duma conversa entre colegas do Secundário: "as pessoas não são as mesmas... já passaram à fase da teorização".
Das hipóteses aí avançadas para a definição do significado que poderia estar contido no domínio potencial daquela expressão, reedito aqui uma delas, a que me parece susceptível de favorecer um quadro mais compreensivo das transformações que justificarão a expressão em análise. Reescrevo: "o ?passar à fase da teorização? corresponderia à denúncia duma tendência, que se virá afirmando no interior das instituições escolares, de sujeitar as práticas a enquadramentos hiper-regulados internamente que, não obstante a sua aparente flexibilidade jurídico-administrativa, requerem, por isso mesmo, intermináveis afinações "teóricas", em detrimento da sua pertinência prática".
Nos termos desta hipótese, a "passagem à fase da teorização" significará, sarcasticamente, a assunção dum sentimento de perda de controlo das condições de produção da própria profissão,. agora confrontada com a hiper-regulamentação das práticas que é, simultaneamente, uma sub-regulamentação, uma vez que não dispensa a figura da flexibilização que significa, justamente, o suplemento prático aonde não chega nenhuma regulamentação. A flexibilização é, então, a figura da discórdia e, portanto, a fonte da "teorização" no sentido sarcástico que assinalámos: ela representa, por um lado, o espaço da iniciativa e da inovação, enquanto a regulamentação admite a sua própria limitação prática; mas representa, por outro lado, a sujeição e a instabilidade, já que deve a sua legitimidade institucional à própria regulamentação de que deriva. A flexibilização é, então, um exercício delegado: para que os actores sejam autorizados à flexibilização, ela precisa de ser reconhecida administrativamente, isto é, precisa de exibir as condições legais de instabilidade escolar e profissional que justifiquem medidas de estabilização, supostas nos mecanismos da flexibilização. Ou dito de outro modo: a própria instabilidade precisa de estar prevista, sendo isso que dita a necessidade de hiper-regulamentação.
É neste quadro que as medidas de flexibilização não podem escapar a um estatuto de ambiguidade radical que explicam a fuga para a "fase da teorização": por um lado, supõem o reconhecimento de competências atribuíveis aos actores/professores, enquanto produtores de soluções não contidas em pacotes previamente confeccionados e, por outro, implicam uma obrigação/sujeição, cujo desempenho está sujeito a observâncias técnico-administrativas, sem as quais não há reconhecimento institucional da sua viabilidade. É a imposição da conciliação destes dois pontos de vista, através da regulamentação, que esvazia de sentido a prática da autonomia: na verdade, a referência da acção profissional deixa de ser a procura auto-envolvida de soluções pela via da comunicação e da partilha para passar a ser dominada pela busca da conformidade técnico-administrativa que, todavia, jamais é alcancável sem deixar de ser indefinidamente perseguida.
A "fase da teorização" significará, então e finalmente, um tempo em que a escola se torna para os professores um objecto distanciado de observação e análise, sem paixão, nem encantamento, onde as relações se pretendam orientadas segundo o princípio da harmonia pré-estabelecida, garantida a competência técnica e a conformidade administrativa.

Manuel Matos
Faculdade de Psicologia e das Ciências da Educação da Universidade do Porto


  
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Edição:

N.º 85
Ano 8, Novembro 1999

Autoria:

Manuel Matos
FPCE, Univ. do Porto
Manuel Matos
FPCE, Univ. do Porto

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