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O Erro de Álvaro de Campos
  1. "Paixão" e "isenção" são as duas palavras que Luciano Alvarez, correspondente do "Público" em Díli, utiliza na entrada de 25 de Setembro último do seu "diário de um jornalista" para caracterizar o trabalho de um colega de ofício que por lá andou durante três meses, que filmou o assalto ao comboio humanitário em Liquiçá, que contou muito do que lá se tem passado para os espectadores da SIC e que agora regressa à base.
  2. Não conheço pessoalmente o jornalista Luciano Alvarez. Tão pouco vi ou ouvi, salvo erro, as reportagens do seu colega da SIC sobre Timor, o que pelos vistos deveria ter feito. Mea culpa. Invoco como atenuante o facto de ver pouca televisão e ainda menos SIC, que não faz nem o meu género nem o meu horário. Mas sei que "paixão" e "isenção" rimam menos mal fonicamente, tanto como as suas cognatas, "emoção" e "razão".
  3. O difícil é fazê-las rimar cognitivamente, inteligentemente, como muito bem sabia o engenheiro Álvaro Campos. Um dia, corria o ano de 1931, Álvaro Campos escreveu ao seu quase tão misterioso amigo Fernando Pessoa, o único que parece tê-lo conhecido em vida : "Estou cansado da inteligência. Pensar faz mal às emoções. (...) Estou cansado da inteligência. Se ao menos com ela se percebesse qualquer cousa!".
  4. Juntar, pois, em boa prosa portuguesa, essas duas palavras tão desavindas e fazê-lo, ainda por cima, jornalisticamente, diariamente, escrupulosamente, sucintamente, quando o tema é o drama pungente do povo de Timor, eis o que não se julgaria possível acontecer no país do engenheiro Álvaro de Campos. Eu, pelo menos, não o esperava.
  5. Mas foi o que tem vindo a acontecer todos os dias nas reportagens de Luciano Alvarez. Em verdade vos digo, eu que nunca estive em Díli, mas que sou leitor assíduo do jornal onde Alvarez trabalha, que as mesmas palavras que ele emprega na hora do adeus a um colega ? as mesmas, afinal, que o engenheiro Álvaro Campos tinha por resolutamente antagónicas ? têm estado constantemente presentes, unha com carne, no seu diário timorense, desde o primeiro dia em que o iniciou, assim como em todas as peças de reportagem que tem escrito sobre o drama timorense.
  6. Haverá, porventura, outros casos do género. Não sei. As minhas leituras da imprensa são muito limitadas. Um dia destes, porém, quando chegar o momento de apurar toda a verdade do que naquela terra distante se tem vindo a passar nos últimos meses, talvez alguém se lembre de republicar numa só peça todas a peças do diário de Luciano Alvarez, para que conste tudo o que só se deixa entender com paixão e isenção.

José Manuel Catarino Soares
Instituto Politécnico de Setúbal


  
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Edição:

N.º 84
Ano 8, Outubro 1999

Autoria:

José Manuel Catarino Soares
Instituto Politécnico de Setúbal
José Manuel Catarino Soares
Instituto Politécnico de Setúbal

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