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João Araújo Correia - Centenário de um Grande Escritor Ainda Esquecido

Nascido em Canelas do Douro (Régua), em 1 de Janeiro de 1899, João de Araújo Correia foi desde os Contos Bárbaros (1939) reconhecido pela crítica como um dos maiores contistas portugueses, na esteira de uma declarada herança camiliana, mas ainda hoje, apesar da vastidão da sua obra literária, sobretudo no domínio do conto, o autor de Montes Pintados talvez continue a merecer uma injustificada indiferença dos leitores. E, mesmo no ano em que passa o primeiro centenário do seu nascimento, tal efémeride que deveria ser pretexto para avivar a memória e a importância da obra de João de Araújo Correia não teve o reconhecimento público que se impunha.
No entanto, justifica-se sempre reabilitar perante o público leitor, que se mostra alheado de uma verdadeira perspectiva crítica que o faça entender e ler com outros olhos certos autores que pelos anos fora, sem se saber as razões disso, continuam a ser mal-quistos ou esquecidos, enquanto outros autores, tantas vezes sem a grandeza literária de João de Araújo Correia, recebem os louros e prebendas nem sempre de todo justificadas. E, tendo sido tão vasta a obra literária do autor de Contos Durienses como longa e vivida foi a sua própria vida em mais de oitenta anos bem contados como escritor e médico (e, de passagem, assinale-se que foi sepultado em Canelas do Douro em 1 de Janeiro de 1986, quando completava nesse dia 87 anos de idade), nem por isso a sua criação literária, repartida pela crónica, novela, conto, temas linguísticos, notas camilianas e colaboração regular em jornais e revistas, tem sido alvo de atenção e de estudo, com as excepções que ainda hoje constituem alguns ensaios mais profundos ou biográficos de Amorim de Carvalho, Cruz Malpique, Guedes de Amorim, João Pedro de Andrade, João Bigotte Chorão ou Mário Dias Ramos.
Enfileirando, pois, nessa galeria de "escritores do silêncio", o autor de Folhas de Xisto foi desde sempre considerado como um dos escritores mais puros e classicistas na arte de escrever e de contar. Narrador de excepcional virtuosismo literário, João de Araújo Correia modela em pequenos pedaços de prosa as pessoas, os lugares e as coisas à sua imagem e semelhança. Homem que sempre se manteve ligado ao seu povo duriense, existem na sua obra páginas e páginas de excelente prosa, barroca por vezes, mas por onde perpassa de modo fulgurante laivos de profundo humanismo, porque as suas histórias, folhas caídas de uma árvore que não envelhecera, mantêm essa inconfundível característica de vida vivida em todos os planos: de ambiência pequeno-burguesa, retratando as gentes de uma região que conheceu palmo a palmo nos alargados anos da sua experiência, dela soube desvendar as raízes mais fundas e os seus contos e crónicas falam irremediavelmente do que se passa nos meios de província, mas sem evidenciar em tudo o que narra uma visão provinciana. Na verdade, poucos escritores existem na nossa actual literatura que, com tão largo fôlego estilístico e excepcional poder de criação, tenham construído com uma fidelidade quase obsessiva a obra que João de Araújo Correia nos deixou em mais de trinta títulos de bibliografia activa.
Longe das especulações sem sentido de que certos autores apenas exploram esse mundo rural e de província numa perspectiva etnográfica ou regionalista, a sua obra fala e impõe-se por si mesma na dimensão e força de ser um "bloco" literário há muito reconhecido, para lá de se querer rotulá-la como neo-realista, regionalista ou documentalista. Mas qualquer título serve para definir a obra de João de Araújo Correia e dever ter-se em conta a importância de livros como Contos Durienses ou Folhas de Xisto, sobretudo este último em que, sem dúvida, se demonstra a capacidade de narrar de um escritor que sabe chegar à cidade sem abandonar a terra de origem. E assim a Régua, como toda a região duriense, lhe ficou a dever ter sabido, com engenho e arte à boa maneira classicizante portuguesa, glorificar numa prosa forte e exemplar toda a vida pacata e monótona de uma região fustigada pelas própria condições naturais, num retrato que nos deu há mais de quarenta anos e por isso poder dizer: «Parece-me que foi sobre folhas de xisto, lâminas de alvenaria da minha região, que escrevi estes contos».
Por isso, ler os livros de João de Araújo Correia é, na verdade, sentir a pulsação vibrátil de um povo que faz do seu dia a dia, dos instantes mais desocupados ou preocupados, a "canção da terra" que a terra ensinou a cantar. Médico de província, homem culto e muito ligado às suas gentes, o autor de Contos Bárbaros soube como poucos escritores erguer em forma de homenagem o que a própria vida lhe consentiu pudesse realizar. E, mais à sombra tutelar de Camilo do que de Aquilino, soube afirmar-se como um escritor capaz de ter captado todas as antigas ressonâncias e transmiti-las de modo profundamente reinventado, sem ter de filiar-se em qualquer escola ou corrente estética, mas na certeza, como em tempos declarou Óscar Lopes, de que até o neo-realismo «tinha muito que aprender com a espontaneidade criadora (individual e socialmente criada) da imaginação de casos, coisas
e pessoas».
Prosador exemplar e grande contista, no ano em que passa o primeiro centenário do seu nascimento e praticamente quase não comemorado, João de Araújo Correia bem merece que se evoque a sua memória e se enalteça a grandeza de escritor, e assim dar razão a estas palavras que Aquilino pôde pronunciar em 1960 numa homenagem nacional então prestada ao hoje tão esquecido autor de Terra Ingrata:«Não é o mestre da Régua, como se dizia da pintura, no obscuro século de Quinhentos, o mestre de Ferreirim ou de Linhares. Mas o mestre de nós todos, que andamos há cinquenta anos a lavrar nesta ingrata e improba seara branca do papel almaço, e somos velhos, gloriosos ou ingloriosos, pouco importa; mestre dos que vieram no intermezo da arte literária com três dimensões para a arte literária sem gramática, sem sintaxe, sem bom senso, sem pés nem cabeça; e mestre para aqueles que terão de libertar-se da acrobacia insustentável e queiram construir obra séria e duradoura».
Mas é sempre tempo de se elogiar e reconhecer os nossos grandes escritores, de ontem e de hoje, e por isso repetimos que esta efeméride dos 100 anos de nascimento de João de Araújo Correia (1899-1999) poderá ser de facto um bom pretexto para enaltecer junto do público leitor o valor e a importância da sua admirável obra literária realizada em cinquenta anos de ofício e vocação de escritor e quase toda ela reeditada nas suas "Obras Completas" pela Editorial Estampa.

Serafim Ferreira
crítico literário


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 84
Ano 8, Outubro 1999

Autoria:

Serafim Ferreira
Escritor e Crítico Literário, Lisboa. Colaborador do Jornal A Página da Educação.
Serafim Ferreira
Escritor e Crítico Literário, Lisboa. Colaborador do Jornal A Página da Educação.

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