No último número de "a Página", confrontavam-se, aqui, dois modelos de profissionalidade docente que, simplificadamente, tentei caracterizar em torno de uma prática comprometida com a relação/comunicação, por um lado e, por outro, em torno de uma prática comprometida com a transmissão/controlo. Ao primeiro, presidiria a ideia de produção da profissão docente apostada no reconhecimento e valorização das experiências de vida dos alunos e das suas diferentes formas de cultura, como ponto de partida para a sua transformação, e ao segundo a ideia de que a profissão se exerce por referência a conhecimentos e a técnicas que se aplicam, tendo em vista a sua reprodução. Conforme então admitia, embora estes modelos se apresentem, do ponto de vista formal, excessivamente simplificadores do quotidiano profissional, a verdade é que eles tendem a ser dicotomicamente assumidos como se se reportassem a dois mundos sociais diferentes e, até, antagónicos: o mundo da vida, do acontecimento e da peripécia existencial e o mundo cientifica e tecnicamente administrado, a que aquele devia sujeitar-se. A escola sempre se caracterizou por tentar anular a tensão entre estas duas imagens de mundo, ou, dito de forma menos eufemística, por não reconhecer a legitimidade desta tensão: num primeiro momento, ela foi recusada através da selecção social operada à entrada do sistema escolar, depois, foi subtilizada pela meritocracia praticada no seu interior, (uma espécie de selecção "natural"), enquanto a diferenciação/selecção se pôde apoiar em alternativas profissionais, atribuíveis tanto a propriedades individuais, como a oportunidades de emprego; agora, quando estes mecanismos se revelam menos eficazes - o mercado de trabalho opera cada vez mais tarde e as propriedades individuais são cada vez mais sociais e menos "naturais"- espera-se que a tensão entre o mundo da vida e o mundo tecnicamente administrado seja resolvida à custa da figura da gestão e flexibilização curricular, à qual caberia, assim, distinguir entre os que são candidatos a alunos e os que são já plenamente alunos. Nestes termos, o mundo da vida fica identificado com uma categoria menor de existência, uma forma larvar e provisória, cujo sentido é o de se opor à "verdadeira" condição de "aluno" de quem se espera que, para o ser, saiba recusar, justamente, os apelos do mundo da vida. Compreende-se assim que o mundo tecnicamente administrável exija, antes de tudo uma juventude totalmente alunizável pelo que não deve ser considerada nenhuma forma de abuso estilístico afirmação de que a gestão flexível dos currículos participa mais dessa preocupação do que a de ser uma qualquer tentativa de transformação da escola. A flexibilização curricular é a contrapartida estratégica dos objectivos sociais da universalização da escola que, por isso, não tem apenas alcance demográfico ou espacial mas, essencialmente, ideológico, enquanto instrumento de inclusão socio-cognitiva à medida que outras instituições agregadoras tradicionais, como o Estado e as religiões, vão perdendo o seu papel de referência. Como, de resto, viu (e preconizou) Durkheim. Neste contexto de leitura, que comunicação é possível se não passa pelo mundo já escolarizado? "Nós não sabemos lidar com eles nem com a sua disciplina" - dizia uma colega a propósito dum dos tais candidatos a aluno duma escola secundária. E tem que saber? Será essa uma competência da Escola? Ou da vida? Manuel Matos Faculdade de Psicologia e das Ciências da Educação da Universidade do Porto
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