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Nenhum Estudante ... é Estrangeiro

(uma viagem a quatro vozes por outros sonhos e outras saudades)

Numa altura em que os movimentos estudantis adquirem um protagonismo crescente, que opinião têm os bolseiros estrangeiros acerca da educação em Portugal? Como vivem os estudantes dos países mais pobres? E quais as suas expectativas de futuro? Algumas perguntas a que quatro histórias tentam responder.

Testemunho 1

Muhamad Farid, chamemos-lhe assim, é um estudante marroquino que se apaixonou pela língua portuguesa. Muito por culpa da televisão. Quando há alguns anos captou pela primeira vez um programa de origem nacional, algo na sonoridade seca dos vocábulos lhe despertou a curiosidade. A partir daí, sempre que podia fazia 'zapping' até um canal português. Quando entrou para a universidade, em Marraquexe, decidiu estudar línguas germânicas e português. Há dois anos quis tirar o mestrado e ficar a saber mais acerca da cultura e do país que, na sua terra natal, empresta o nome às laranjas: "bortujal" (ler o 'j' como duplo 'r').
(A conversa é desenrolada à cautela. Nada de nomes ou de perguntas mais indiscretas. "Sabe como é... a gente não quer problemas", diz Farid num tom de voz tímido. O governo marroquino não gosta que um súbdito de sua majestade fale sem autorização. Mesmo que não seja para dizer algo que eventualmente comprometa o poder político. Enfim, assuntos de Estado).
No âmbito de um acordo estabelecido entre os ministérios da educação dos dois países, foi-lhe possível vir estudar para a faculdade de letras do Porto com uma bolsa de aproxidamente cem contos. Uma oportunidade para testar a sua capacidade de comunicação e conhecer um novo país, ao qual não foi difícil adaptar-se. Os portugueses, assegura, "são um povo simpático, muito parecidos com os marroquinos".
O ano passado a vida complicou-se. A bolsa de estudo não lhe voltou a ser atribuída e Farid viu-se forçado a anular a matrícula. Viveu um período difícil. Durante uns meses teve de recorrer à ajuda da família e pernoitar em casa de uns amigos portugueses, em Santa Maria da Feira, onde ainda se encontra a viver. Para fazer face às despesas começou a dar aulas de árabe numa cooperativa cultural de apoio a minorias étnicas. O salário auferido, no entanto, está longe de cobrir todas as necessidades. O que vale, explica num português quase perfeito, é não ter muitos gastos para além dos transportes e da alimentação: não bebe, não fuma e só muito raramente sai à noite.
Este ano voltou a candidatar-se à bolsa a que tem direito. Apesar de esperançado, está a concorrer para professor assistente de árabe no Porto e em outras faculdades do país como forma de prevenir possíveis surpresas. É que "sem trabalhar não se pode viver", afirma com um encolher de ombros. Aos 30 anos, e apesar das dificuldades por que tem passado, o objectivo inicial da sua viagem continua intacto: regressar a Marrocos e dar aulas de português no ensino superior. Os laços de amizade, esses, garante que não os esquece.

Testemunho 2

Um pouco diferente é o caso de Hugo Gonçalves, um timorense que não veio para Portugal "estudar intencionalmente", como ele próprio faz questão de referir. Até há quatro anos, tinha ainda dezoito, estudava engenharia mecânica na universidade de Java Oriental. Um dia, o grupo de estudantes timorenses ali radicado decidiu organizar um protesto contra o governo indonésio. Não tardou que fossem perseguidos por tal ousadia. "Sentia-mo-nos intimidados pelas autoridades e tivemos de sair de lá de qualquer maneira. O clima era muito perigoso", conta Hugo.
Correndo risco de vida, ele e outros vinte e oito colegas conseguiram refugiar-se no interior da embaixada dos Estados Unidos da América em Jacarta. Apesar de se sentirem mais seguros, o pedido de asilo político nos EUA foi-lhes recusado e as autoridades diplomáticas americanas comprometeram-se apenas a acolher uma parte do grupo. "Assim não podia ser", explica. "Ou todos ou nenhum". A coesão do grupo ficou bem patente. Após alguns contactos com a diplomacia portuguesa, acabaram por vir para cá.
Depois de permanecerem provisoriamente dez meses em Lisboa, onde contactaram o ministério da educação para arranjar maneira de prosseguir os estudos, a maior parte decidiu pedir transferência para o Porto. O ambiente da nova cidade seduziu especialmente o jovem Hugo. "Gosto muito das pessoas e da tranquilidade que se vive. É um lugar mais calmo, não tem a mesma agitação de Lisboa". Do grupo inicial, apenas dez continuam na cidade. Os restantes foram-se dispersando pelo resto do país, outros ainda por Inglaterra e Irlanda.
A bolsa de estudo, de 52 contos, não chega para tudo. "Vamo-nos desenrascando como podemos, trabalhando aqui e ali". Ele próprio já chegou a trabalhar num restaurante e nas férias de verão arranja sempre algo com que se ocupar. Neste momento, por exemplo, trabalha na cantina da faculdade de engenharia. Uma forma de ganhar algum dinheiro extra e de poupar nas refeições. Para os livros, nomeadamente, que Hugo considera serem excessivamente caros. O recurso às fotocópias acaba, na maioria das vezes, por ser a única alternativa possível.
Uma das principais dificuldades com que se deparou à chegada foi a diferença entre os sistemas de ensino. "São completamente diferentes. Na Indonésia pratica-se um modelo parecido com o americano, com base em créditos. Aqui, se não tivermos 40 por cento das cadeiras feitas não passamos de ano. Lá o sistema é por semestres, é mais fácil". Além disso, queixa-se, na sua faculdade o horário é "muito preenchido e intensivo". Mesmo no segundo ano, que actualmente frequenta. A maioria dos seus colegas, assegura, não se conseguiu integrar no sistema.
Surpreendentemente, a parte mais difícil, ainda assim, foi a adaptação linguística. "Aprendi praticamente a falar português aqui", diz Hugo com um certo regozijo. É que em Timor, ao contrário do que se possa pensar, a maior parte dos jovens fala em tetum. O português é quase exclusivamente uma língua de recurso, essencialmente falada pelos mais velhos.
Tal como a maioria dos colegas, o seu maior desejo é acabar os estudos e voltar para Timor para ajudar à reconstrução do país. Para muitos, no entanto, essa tarefa revela-se, para já, impossível. "Só quando Timor for livre...", desabafa. A consulta popular que recentemente teve lugar no território, por si só não chega. "Se os indonésios continuarem a apoiar as milícias vai ser difícil haver um futuro justo e livre para o nosso povo".

Testemunho 3

Ao contrário deste último, a barreira linguística não constituiu qualquer problema para José Angulo, nascido numa pequena cidade da Beira, em Moçambique. O português foi sempre a sua primeira língua, apesar de nos primeiros anos de infância ter convivido diariamente com um dos dialectos locais. Desde pequeno que tinha a ambição de conhecer Portugal, país do qual tanto tinha ouvido falar e que povoava a sua imaginação. A biblioteca local era um dos seus refúgios preferidos. Era lá que se entretinha a procurar mais informações sobre aquela terra distante lá na europa.
A guerra, que massacrava o interior do país e esteve algumas vezes à porta de casa, levou-o até ao Maputo, onde ficou a morar com uns tios. Foi lá que fez o ensino secundário e se inscreveu, mais tarde, na universidade Eduardo Mondlane para tirar o curso de português. Tudo com um propósito bem definido: Angulo quer ser professor e linguista. E tem um recado a dar: "é importante reforçar a presença da língua portuguesa em Moçambique porque o inglês, em certos domínios, começa a substitui-la".
Está a estudar em Portugal desde há três anos. Passou primeiro pela capital, onde conhecia uma família amiga, e veio para o Porto pouco tempo depois. Não se arrependeu. "Aqui respira-se um ambiente cosmopolita. Há estudantes de muitas nacionalidades, o que é óptimo para conhecer outras pessoas e outras vivências. Fiquei agradavelmente surpreendido...".
As diferenças entre os níveis de vida dos estudantes, que variam conforme a sua proveniência, é algo que o choca. "Tenho colegas de outros países africanos que vivem com bastantes dificuldades. A vida em Portugal não é propriamente barata. Alguns deles têm de trabalhar porque de outra forma não sobreviveriam". Pelo seu lado, considera-se apenas com sorte. Não revela o valor da bolsa, mas considera-a suficiente para levar uma vida confortável. Além disso, no quarto ano, as cadeiras já não se fazem propriamente com uma 'perna às costas'. "É preciso estudar mais arduamente, pelo que nem sequer tenho tempo para sair à noite Só de vez em quando".
Angulo não vê diferenças significativas relativamente à qualidade do ensino praticado no seu país. Reconhece, no entanto, as virtudes de um parque escolar renovado. A faculdade de letras da universidade do Porto, garante, é um dos edifícios mais interessantes e funcionais que já teve oportunidade de conhecer. "É um prazer renovado ter aulas naquele local. Os professores é que faltam um pouco mais do que seria de esperar..."

Testemunho 4

À noite, o café Luso é um dos pontos de encontro preferidos dos estudantes da cidade. Uma miscelânia de pessoas, cores e estilos, onde a diferença, mais do que um direito, é um previlégio. Foi lá que fomos encontrar o último desta curta série de entrevistados: Amílcar Cabral, futuro economista.
No Mindelo, em Cabo Verde, onde nasceu há 23 anos, deixou para trás três paixões: a família, os amigos e o grupo de teatro onde começou a actuar quando era ainda adolescente. Partir para Portugal foi uma decisão difícil, reconhece, mas necessária. O ensino superior no seu país, nomeadamente na área da economia, está ainda pouco desenvolvido e aqui sempre tem oportunidade de estagiar numa empresa. "Cabo Verde é um país com inúmeras potencialidades. Só precisa de quem saiba gerir equilibradamente as oportunidades de negócio, os recursos e a distribuição da riqueza".
A luta por uma sociedade mais justa, que na sua opinião pode ser conseguida através do desenvolvimento das relações económicas, é uma das principais preocupações do jovem Amílcar. O nome, aliás, não é uma mera coincidência. Foi baptizado com o mesmo nome do célebre líder histórico do PAIGC porque os pais, explica, nutriam por ele uma especial admiração. Assim, desde cedo, aprendeu que o humanismo é um valor que pode bem ser aplicado a qualquer ramo da ciência. Mesmo a uma ciência tão "fria" como é a economia.
Lamenta que essa preocupação, porém, não entre em linha de conta nas equações e teorias ensinadas tanto aqui como no resto do mundo. "Aprendemos quase exclusivamente que a economia são cifrões e que a principal tarefa de um economista é multiplicá-los. É um retrato um pouco simplista, mas é assim que as coisas acabam por funcionar". Numa perspectiva idêntica à dos pais, admira Milton Friedman, o conhecido prémio nobel da economia, já falecido, pelo cariz social que incorporava nas suas teorias.
Cabral define-se a ele próprio como um previligiado. Não porque viva melhor do que alguns colegas, mas porque no seu país nem toda a gente tem a mesma oportunidade de estudar no estrangeiro. É por essa razão que tenta levar a sério a "confiança" que nele foi depositada. "Uma espécie de missão de estado", diz num tom divertido. Recebe mensalmente uma bolsa de estudo que ronda os 62 contos, com alojamento incluído. Mas o dinheiro, garante, "desaparece muito rápido". Não fosse uma pequena ajuda do pai e o mês sobraria sempre ao fim do salário.
Quando regressar pretende ingressar na administração pública do território e contribuir para o "progresso sustentado" do país. Afinal, garante, "a maneira mais eficaz de mudar um sistema é fazer parte dele".

Ricardo Jorge Costa


  
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Edição:

N.º 83
Ano 8, Setembro 1999

Autoria:

Ricardo Jorge Costa
Jornalista do Jornal A Página da Educação
Ricardo Jorge Costa
Jornalista do Jornal A Página da Educação

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