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Fernando Namora - Dez Anos Depois da Sua Morte

Passados dez anos sobre a sua morte, repetimos que, em cinquenta anos de vida literária sempre activa e actuante, espelhada em mais de trinta títulos publicados, Fernando Namora deixou uma obra que se tornou das mais marcantes e expressivas da literatura portuguesa do nosso tempo. Na leitura global dessa obra e no apelo de memória feito para evocar algumas das histórias profundamente humanizadas e enraizadas na nossa realidade social e cultural, em que se descobre e evidencia uma pessoalíssima visão humana de saber envolver as suas personagens em enredos e conflitos de gentes e terras que se levantaram no entusiasmo e luta para emendarem o rumo de suas vidas pelas sete partidas do mundo, não é menos significativo lembrar muitas das suas melhores páginas de ficção ou de crónica, reflexões acerca da arte e da literatura, observações ou notas biográficas e críticas sobre outros escritores e companheiros de percurso, a par de muitos poemas que nunca deixaram de habitar a sua "casa" literária.
Partindo nessa aventura intelectual com um primeiro livro que data de 1938, o autor de Domingo à Tarde cedo se ligou e empenhou no movimento neo-realista renascente em Coimbra nos tempos tormentosos do fascismo e nos pungentes sinais das muitas lutas que se travavam em Espanha e de que chegavam notícias da sangrenta e dolorosa guerra civil. Foi esse o começo de um itinerário que não teria descanso ao longo dos cinquenta anos de vocação e ofício literário, sempre rigoroso e regular, fazendo avançar as águas do seu "rio triste" em cortejo humanizado pelas vozes de mineiros, contrabandistas, camponeses, estudantes em luta, deuses e demónios da medicina, mulheres e homens em combates penosos e desiguais, mas na constante valorização de uma obra que permanece, se reedita com regularidade, se estuda e avalia pela compreensão e aceitação dos leitores que através dos livros de Namora de alguma forma descobrem um sentido próprio de vida.
Na verdade, o seu trajecto literário descreve-se por diferentes planos de expressão, mas por aí se ergue a mesma grandeza humana que se prende a uma visão do mundo que foi de forma imediata o espelho dos problemas dos outros e de tanta gente. Julgamos mesmo que poucas vezes Namora se jogou nas histórias dos seus livros, isto é, raramente um "eu" se sobrepôs aos outros (apesar de sempre se falar da sua riquíssima experiência pessoal), não só por desejar empenhar-se naquilo que escrevia, mas por revelar da literatura um entendimento próprio de por ela, na força e eficácia da escrita, melhor poder emendar o mundo.
E isso nitidamente denunciou no último livro publicado, Jornal sem Data, em que afirma: "eu, Eu, EU. É um espectáculo triste ver escritores lúcidos incharem de tal modo o balão do seu caso, o balão da sua pessoa, que nada mais fica do que a expectativa do inevitável estoiro. O mundo todo é deles. É deles. Os outros existem apenas porque não há palco sem auditório". E, aceitando sempre a literatura como acto de liberdade e sem constrangimentos, Namora ainda se justifica: "Por mim, que tenho investido na arte uma experiência existencial e não uma simples elaboração cerebral, a escrita impregna-se de uma atmosfera afectiva - mesmo quando os meus livros reflectem uma vincada preocupação social".
Por isso, na passagem destes dez anos sobre a sua morte, repetimos que ficou connosco uma obra que exige ser entendida como o foi em 1968 no melhor e mais elaborado estudo crítico e biográfico dedicado ao autor de Rio Triste por parte de Mário Sacramento (Fernando Namora: a Obra e o Homem, Editora Arcádia), na perspectiva global de ter sido consolidada no caminho de muitos anos e, como Namora confessa, "não ter vergonha de acreditar naquilo em que acredito: no cada vez mais raro companheirismo, por exemplo; na dedicação a pessoas ou na fidelidade a objectivos".
Mas, por esse sentido de vida, na certeza de que "nunca se regressa a parte alguma", Fernando Namora partiu de consciência tranquila e em paz consigo mesmo de que viver como viveu foi sempre um risco que soube assumir. No bem e no mal dos dias que vivera, na amizade de alguns e numa certa perfídia de que amargamente se queixara, mas na consoladora confiança de ter erguido uma obra que perdura, sobretudo por ser o retrato e a imagem de um tempo clandestino, no meio de muitas lutas, mortes e prisões, que nunca deixou de denunciar. Sem tibiezas nem cumplicidades, na verdade e rigor que realmente singulariza o autor de Fogo na Noite Escura como um dos prosadores que conferiu à literatura portuguesa esse estatuto de ser hoje lida e aceite em várias partes do Mundo.
Repetimos: dez anos depois da sua morte e no zénite dessa obra que se concluiu com esse diário a que chamou Jornal sem Data, Fernando Namora está vivo e continua a nosso lado.

Serafim Ferreira
crítico literário


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 80
Ano 8, Maio 1999

Autoria:

Serafim Ferreira
Escritor e Crítico Literário, Lisboa. Colaborador do Jornal A Página da Educação.
Serafim Ferreira
Escritor e Crítico Literário, Lisboa. Colaborador do Jornal A Página da Educação.

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