Página  >  Edições  >  N.º 80  >  Encruzilhadas da Identidade

Encruzilhadas da Identidade

Na sua obra Entre dois Mundos, Pedro D' Orey da Cunha, através de pequenas histórias singulares mas representativas de camadas sociais mais amplas, conta-nos a vida quotidiana de famílias portuguesas na América. Não é que vá falar hoje particularmente de emigração ou da vida de emigrados. Sirvo-me de uma ou outra referência a essas histórias para explanar a minha perspectiva sobre a construção/reconstrução da identidade, através de um processo de metamorfose cultural, que não raras vezes coloca as pessoas numa encruzilhada reflexiva. Do ficar ou partir; do que ser e fazer quando se chega; do que ser e fazer quando se retorna; e, enfim, dos disfarces a que nessas circunstâncias se recorre para sobreviver, ser ou parecer.

As histórias

"Entre dois mundos. Entre o mundo agrícola, isolado, ao ar livre, e o mundo industrializado, cosmopolita e poluído; entre o mundo onde todos se respeitam e conhecem e o mundo dos arranha-céus e das violências raciais; entre o mundo do futebol na rua, da espera dos barcos e das histórias à lareira, e o mundo do Rock' n Roll, da televisão e dos supermercados. Entre, muitas vezes, o mundo do trabalho à jorna, da casa de pedra sem chaminé e da bilha de barro, e o do mundo da social security, do apartamento aquecido e do frigorífico.
A gente nova adapta-se depressa, dizem os que se ofuscam com as roupagens do novo mundo que, depois de um mês, observam nos filhos. Adaptam-se depressa, sim, mas à custa de muita vergonha, de muita confusão e de muitos valores perdidos." (Cunha, 1977: 16).
Tenho-me preocupado com a temática controversa da diversidade e da unidade (Vieira, 1996). De resto, como já dei também mostras aqui. De como conciliar a cultura local com a cultura global sem partir definitivamente em relação à cultura de origem. Tenho trabalhado esta problemática identitária, essencialmente em volta de dois conceitos: o oblato (do latim oblatu. Nome que se dava ao leigo que se oferecia para prestar serviços num convento; indivíduo que os pais dedicavam ao serviço de Deus) e o trânsfuga.
Considero que tanto o oblato como o trânsfuga são híbridos, mestiços culturalmente - neste sentido, multiculturais no processo de construção. Mas, o trânsfuga mostra a sua hibridez (partindo da margem esquerda - a primeira cultura - para atingir a direita, quando atinge esta última sabe que já habitou a primeira e não o esconde), o oblato esconde-a; ou seja, na realidade é também um "terceiro Instruído", mas não o mostra ser. Assume-se, em termos de atitude, como monocultural. Ao nível do explícito, manifesta só a chegada - a segunda cultura. O trânsfuga é um terceiro instruído que constrói pontes atitudinais e contextualizadoras entre as esferas culturais que atravessou. Manifesta assim o seu eu intercultural.
É relativamente claro que esta análise se pode aplicar quer aos emigrantes, quer às camadas sociais em mobilidade social, que vivem com crises de identidade, quer a alunos, que tantas vezes têm vergonha da cultura dos seus pais, quer mesmos à pedagogia de alguns professores, como tenciono reflectir neste jornal, num número próximo.

O disfarce

O oblato dificilmente consegue ser. Ser na essência. A matriz da cultura de origem marca-o na linguagem, na indumentária, na estética, no consumo..., também no nome. Mas tudo faz para parecer. No caso dos emigrantes portugueses na América, o processo começou por mudar o próprio nome - a chancela da cultura emigrante. "Os descendentes da primeira vaga tinham nascido numa América muito pouco aberta à diferença: ou o recém-chegado se assimilava, desaparecendo rapidamente no anonimato das grandes massas, ou condenava-se à vida sem saída do ghetto. Nem todos podiam ou conseguiam perceber as regras do jogo. Aqueles que o souberam e puderam mascararam-se o melhor que puderam de americanos. O primeiro grande disfarce foi a mudança de nome. Não chegava mudar-se António para Tony, ou Manuel para Manny. Os nomes de família, que ao ligavam a todos os seus maiores, tiveram de cair. E assim desapareciam Machados e surgiam Marshalls, os Rodrigues metamorfoseavam-se em Rogers, os Soares em Sears, os Silvas em Sylvias, e por aí fora" (Ruben de Freitas Cabral, in Prefácio á obra de Cunha, 1997: 10).

Chegar, ficar, partir, ... Como?

Também o sucesso escolar implica um aceder à lógica da cultura letrada, a da escrita, da uniformidade, da formalidade e da globalidade versus particularidade e cultura do quotidiano - uma metamorfose profunda para muitos. Esta metamorfose corresponde também a uma transformação do ethos e da identidade pessoais, que acaba por ser uma consequência natural de qualquer processo de aprendizagem. Qualquer aprendizagem modifica sempre o saber pessoal, na medida em que nunca se aprende a partir do nada e na medida também em que a aprendizagem é feita por assimilação e retenção do novo por comparação e integração com e no velho. Aprender significa sempre, de alguma forma, transformar-se. Esta metamorfose cultural, ocorrida a propósito do acesso à cultura dominante, pode levar à construção de dois modelos extremos. Ou se ignora e esquece o passado cultural donde se provém, que dá uma mente cultural para o entendimento da vida, ou, pelo contrário, se consegue tirar partido dessa riqueza da cultura original, como experiência, como quotidiano entre os vários quotidianos da vida, para assim praticar uma pedagogia do relativismo cultural, uma pedagogia contra o racismo, contra a xenofobia, contra a segregação social, contra a discriminação social e sexual, enfim uma pedagogia que eu tenho chamado de intercultural. Por outras palavras, e metaforicamente, ou se assume o mundo a preto e branco e com o sucesso escolar se acede ao branco, refutando o preto donde se parte, e se tem assim um perfil pessoal multicultural pois atravessa-se pelo menos duas culturas, mas uma atitude monocultural, porque o passado passa a ser visto como não cultura; ou se assume o mundo como policromático e, sendo-se pessoa também multicultural, actua-se, pensa-se e comunica-se duma forma intercultural não se estratificando as diferenças culturais.
O primeiro modelo que enunciei, aplica-se às pessoas, aos profissionais, aos professores também, que tendo medo de falar do seu eu, pois falar do seu eu significa pôr a nu todo o seu background cultural, nunca falam das suas origens, onde nasceram, cresceram e viveram, antes do passaporte que a escola lhes concedeu e que lhes permite aceder à cultura global e letrada.
Este modelo, o oblato, aplico-o justamente a essas pessoas que rejeitam as origens socioculturais. O oblato é assim, um resultado possível da metamorfose cultural. Corresponde aos indivíduos que adquirem essa nova roupagem educacional, cultural, quando acedem a um grupo social e deixam outro cujos valores renegam.
O segundo modelo dessa metamorfose extremista é o trânsfuga. O indivíduo recebe o novo, mas não rejeita o velho. Incorpora no seu universo pessoal a aquisição cultural que dá uma nova dimensão à cultura de origem mas que não a aniquila nem a substitui. Antes sim, dá-lhe uma terceira dimensão, resultante da integração comparativa entre o nós e o ele (Corresponde ao terceiro instruído de Michel Serres, 1993).
Todos nós acabamos por atravessar uma multiplicidade de culturas, códigos linguísticos, mais restritos, mais elaborados, mais locais, mais universais, crenças, valores, saberes, etc., que das três uma: ou nos identificamos exteriormente apenas com uma dessas culturas - normalmente a detentora de mais capital; identificamo-nos com várias, somos multiculturais, sentimo-nos divididos, somos por vezes até hipócritas; ou conseguimos conscientemente ligar os vários quotidianos que atravessamos, as várias visões do mundo dos estratos sociais por onde navegamos, estabelecer pontes entre elas, sendo cidadãos reflexivos e trânsfugas sim, mas interculturais.

Ricardo Vieira
Escola Superior de Educação de Leiria

Bibliografia referenciada

  • CUNHA, Pedro D' Orey da ( 1997). Entre dois Mundos. Vida quotidiana de famílias portuguesas na América, Lisboa: Secretariado Coordenador dos Programas de Educação Multicultural. Ministério da Educação.
  • SERRES, Michel, (1993 ). O Terceiro Instruído, Lisboa: Instituto Piaget.
  • VIEIRA, Ricardo (1996). Educação, Tradição e Mudança. Histórias de Vida, Práticas e Representações Sociais, Lisboa: ISCTE, Tese de doutoramento.

  
Ficha do Artigo
Imprimir Abrir como PDF

Edição:

N.º 80
Ano 8, Maio 1999

Autoria:

Ricardo Vieira
Escola Superior de Educação de Leiria, ESE-IPLeiria. Investigador do CIID - Centro de Investigação Identidades e Diversidades
Ricardo Vieira
Escola Superior de Educação de Leiria, ESE-IPLeiria. Investigador do CIID - Centro de Investigação Identidades e Diversidades

Partilhar nas redes sociais:

|


Publicidade


Voltar ao Topo